Ucrânia: história de uma Igreja mártir (3/3)

Ucrânia: história de uma Igreja mártir (3/3)

Obstáculos e silêncios. O papel do Vaticano       


No ensaio A liberdade da Igreja no Estado comunista[1], Plinio Corrêa de Oliveira demonstra como, mesmo se um Estado comunista permitisse à Igreja a liberdade de administrar os sacramentos, seria imoral estabelecer uma relação com esse.

A doutrina católica sobre a família e a propriedade privada faz parte do depositum fidei, e não é lícito à Igreja permanecer em silêncio sobre estas questões face aos erros do comunismo.         

Até ao início dos anos sessenta, o Vaticano alertava frequentemente os fiéis contra os erros do comunismo, chegando a condenar explicitamente a táctica da “coexistência pacífica”. Em 1945, o Papa Pio XII escreveu a encíclica Orientales omnes Ecclesias sobre a triste situação da Igreja na Ucrânia.

Por ocasião dos mil anos do baptismo de Santa Olga de Kiev, dirigiu uma memorável Carta Apostólica a Mons. Slipyj, ainda na prisão, protestando contra a perseguição soviética. Por seu lado, o Kremlin, o Partido Comunista da União Soviética e o “Patriarcado” de Moscovo responderam atacando o Vaticano e a Igreja Católica. Isto mudou radicalmente com o advento de João XXIII e o aviamento da Ostpolitik.  

Para avaliar correctamente a Ostpolitik, é importante ter em mente as palavras do “Patriarca” de Moscovo Aleksej: «A Igreja Ortodoxa Russa apoia plenamente a política externa do nosso governo».

Abundam as citações neste sentido da parte da liderança da IOR[2]. Falando ao Conselho Ecuménico de Igrejas, em Genebra, Pimen, sucessor de Aleksej, atacou duramente aqueles que criticavam a URSS, classificando-os como «cegos aos méritos do sistema socialista». Acrescentou que os males que afligiam o homem moderno estavam conspicuamente ausentes do sistema soviético[3].   

Em 1961, o clima começou a mudar. O líder russo Nikita Khrushchev enviou uma mensagem ao Papa João XXIII por ocasião do seu 80.º aniversário. A 7 de Março de 1963, o Pontífice recebeu Alexis Adjubei, genro de Khrushchev, em audiência no Vaticano.

O então bispo, mais tarde cardeal, Johanes Willebrands, começou a preparar a participação dos bispos moscovitas no Concílio Vaticano II. Vários autores observam que esta participação foi aceite na condição de o Concílio não condenar o comunismo[4].

Por sugestão de Plinio Corrêa de Oliveira, em 1965, D. Geraldo de Proença Sigaud e D. António de Castro Mayer apresentaram ao Concílio uma petição, assinada por 454 Padres Conciliares, pedindo a explícita condenação do comunismo. O pedido foi simplesmente silenciado numa gaveta e nunca foi posto à votação[5].

Por outro lado, durante a Conferência Pan-Ortodoxa de Rodes, os próprios ortodoxos confessaram que Moscovo tinha definido como conditio sine qua non o silêncio do Concílio sobre o comunismo[6].  

Este foi o início de uma longa lista de concessões unilaterais por parte do Vaticano, no que viria a ser uma das vitórias mais impressionantes do comunismo soviético. Durante todo este tempo, Roma não disse uma única palavra a favor dos católicos uniatas ucranianos, que continuavam a ser brutalmente perseguidos pela sua lealdade… a Roma.    

Nikodim, metropolita ortodoxo de Leninegrado, teve o descaramento de declarar, contra todas as provas: «Na URSS, os crentes têm os mesmos direitos que todos os cidadãos». Num encontro ecuménico, em Leninegrado, sobre o “Pensamento social católico”, disse: «Hoje, a Igreja Católica aceita a forma de propriedade colectiva proposta pelo socialismo soviético»[7].

Parece claro que a URSS tinha interesse em favorecer a Ostpolitik, vendo-a como um instrumento para a difusão do pensamento socialista entre os católicos.     

Depois do Concílio, os contactos entre o Vaticano e a IOR intensificaram-se. Sob os auspícios do Papa Paulo VI, realizou-se, em 1975, um encontro ecuménico em Trento, em que participou Nikodim, na conclusão do qual foi assinada uma Declaração conjunta que equivalia a um apelo aos católicos para abraçarem o socialismo[8].

Pouco tempo depois, Paulo VI autorizou a celebração de uma liturgia ecuménica no túmulo de São Pedro, presidida pelo próprio Nikodim[9].         

Em 1971, Pimen foi eleito “Patriarca” de Moscovo. Na cerimónia de instalação, na presença do Cardeal Willebrands, falou em tom vitorioso, reiterando que Moscovo exigia a abolição definitiva da União de Brest e «o triunfante regresso dos uniatas à Igreja Ortodoxa». Willebrands, representante oficial do Papa Paulo VI, não levantou nenhuma objecção, nem houve qualquer protesto da Secretaria de Estado. Foi um claro exemplo de silêncio-consentimento.

Um outro facto clamoroso foi o tratamento reservado, em Roma, em 1972, a Mons. Vasyl Velychkovsky, bispo ucraniano consagrado na clandestinidade e nomeado, por João XXIII, Bispo Auxiliar de Lviv dos Ucranianos.

Após anos passados nas prisões soviéticas, onde foi torturado de modo selvagem, foi libertado por motivos de saúde. Indo ao Vaticano, foi tratado como um simples sacerdote. Até o Osservatore Romano se referiu a ele como Padre Velychkovsky.

Hoje sabe-se que Mons. Velychkovsky foi descoberto, preso e encarcerado através da intervenção directa de Filarete, exarca ortodoxo da Ucrânia, sem qualquer protesto por parte do Vaticano. Evidentemente, não se queria arranhar a Ostpolitik com Moscovo[10].   

Em 1971, Filarete presidiu, em Kiev, às celebrações para comemorar a “abolição” das Uniões de Brest e de Uzhhorod. Algumas semanas depois, celebrações semelhantes foram realizadas em Zagorsk (uma espécie de Vaticano da IOR, perto de Moscovo). Perspectivava-se o rápido desaparecimento da Igreja Católica na Ucrânia.

Por ironia sardónica, foi em Zagorsk que se realizou, em 1973, um encontro ecuménico entre a igreja russa e o Vaticano sobre o tema “A Igreja num mundo em transformação”. Nem uma palavra sobre os católicos ucranianos…  

Desenvolveu-se uma verdadeira subjugação psicológica da Ostpolitik vaticana ao Kremlin, em detrimento da Igreja Católica na Ucrânia. Um exemplo característico foi o memorando escrito, em 1971, pelo Padre Paul Mailleux, da Congregação para os Ritos Orientais e Reitor do Pontifício Colégio Russicum, em Roma, em que se declarava contra a erecção de um Patriarcado católico em Kiev, porque «isto poderia ser considerado uma ingerência hostil nos assuntos internos da URSS»[11].

Entretanto, a polícia italiana descobriu uma rede de espionagem soviética no próprio interior do Pontifício Colégio Russicum. O Vaticano interveio rapidamente e o caso foi encoberto[12].         

Este zelo por parte do Vaticano para não irritar Moscovo não foi, contudo, correspondido pelo outro lado. Por exemplo, em 1969, a Basílica de Santa Sofia, na Via Boccea, em Roma foi consagrada na presença do Cardeal Josyp Slipyj.

O metropolita de Leninegrado, Nikodim, foi a Roma, afirmando, já à chegada, que este acto era «contrário ao diálogo ecuménico» e «não deve ser repetido». Na mesma ocasião, reiterou a posição do “Patriarcado” de Moscovo: a Igreja Greco-Católica Ucraniana deveria ser eliminada[13].

Agindo nesta lógica, a IOR estabeleceu um vicariato metropolitano de Kiev para “governar” as paróquias ucranianas no Canadá e nos Estados Unidos, uma clara interferência dos russos nos assuntos internos das Igrejas no Ocidente[14].

Também significativo a este respeito foi o pedido do “Patriarca” Pimen ao Governo Federal alemão para reconhecer as igrejas ortodoxas existentes no território da Alemanha Ocidental como propriedade do Estado soviético[15].  

A subserviência do Vaticano a Moscovo, disposto a sacrificar a Igreja Católica ucraniana no altar da Ostpolitik, escandalizava até mesmo a imprensa laica. A própria revista Newsweek escreveu: «O Vaticano parece determinado a sacrificar cinco milhões de católicos de rito ucraniano na União Soviética»[16].     

Multiplicaram-se os contactos amigáveis entre o Vaticano e a IOR. A 13 de Julho de 1975, por exemplo, pouco depois de receber o ministro soviético Andrei Gromyko, Paulo VI recebeu calorosamente Nikodim, através do qual estendeu saudações a “Sua Santidade o Patriarca de Moscovo”, Pimen[17].   

Por outro lado, o Vaticano procurou criar constantemente obstáculos à vida interna da Igreja Católica Ucraniana no Ocidente, citando alegadas vantagens que os russos concederiam em troca.

Quem também pagou a fatura foi o Cardeal Slipyj, prejudicado por constantes obstáculos ao seu trabalho pastoral. Mais de uma vez, o Vaticano chegou ao ponto de o proibir de sair de Roma para visitar as suas ovelhas noutros Países, como se fosse um prisioneiro.          

Esta trágica situação é também sentida pelos fiéis das catacumbas. Escreve The Ukranian Herald, que recolhe informações clandestinas:

«Relatamos frequentemente exemplos de iniquidades perpetradas pelo regime contra os fiéis católicos de Lviv. O mesmo acontece em toda a Ucrânia Ocidental. A única coisa que não compreendemos é porque é que o Vaticano esqueceu parte ucraniana do seu rebanho maltratado por lobos ferozes»[18].

Curiosamente, muitos ortodoxos ucranianos mostraram simpatia para com os uniatas e apoiariam a constituição de um Patriarcado.

Com a Ostpolitik, a perseguição aos católicos ucranianos aumentou ainda mais. Informava, em 1969, o jornal clandestino The Chronicle of Current Events:

«O número de sacerdotes presos e maltratados pela polícia aumentou muito. Estão previstas penas de prisão severas para qualquer pessoa que assista a uma Missa católica uniata».

Numa reunião da IOR, o metropolita Filarete pediu ao governo soviético “medidas mais eficazes” para eliminar os restos da Igreja Católica na Ucrânia[19]. Numa reunião do Politburo do Partido Comunista da Ucrânia, o líder Valentin Malanchuk (mais tarde Secretário-Geral) lamentou-se de que a Igreja Católica uniata ainda não tinha sido completamente extinta[20].     

Um leão grita no deserto     



A Santa Igreja Católica e a Ucrânia têm um digno paladino na pessoa do Cardeal Josyp Slipyj. Após um longo silêncio que lhe foi imposto pelo Vaticano, o prelado decidiu falar.

No Sínodo dos Bispos, em Roma, em 1971, declarou:

«Os católicos ucranianos, que já sacrificaram montanhas de corpos e derramaram rios de sangue pela Fé Católica e pela sua fidelidade à Santa Sé, estão mesmo agora a sofrer uma terrível perseguição. Mas o que é pior é que não são defendidos por ninguém. Milhares e milhares de pessoas foram mortas.

Outras foram deportadas para as regiões polares da Sibéria. Agora, porém, devido às negociações e à diplomacia, os católicos ucranianos, mártires e confessores, são postos de lado como testemunhas incómodas. Nas cartas e comunicações que recebo, os fiéis queixam-se: “Por que sofremos tanto? Onde está a justiça?

A diplomacia eclesiástica rotulou-nos como impedimentos. O Cardeal Slipyj não faz nada pela sua Igreja!”. E eu respondo: o que é que posso fazer? Quando Pimen, o patriarca de Moscovo, declarou abertamente, num sínodo, que a União de Brest tinha sido anulada, nenhum dos delegados vaticanos presentes protestou»[21].    

Um apelo ao Ocidente         



Até agora, o Ocidente foi como um vasto deserto em que os gritos dos mártires ucranianos ressoaram em vão. Esta indiferença deve cessar. Os povos ocidentais têm a grave responsabilidade de se oporem ao comunismo.

Uma análise atenta mostra que as nações prisioneiras, como a Ucrânia, constituem um elemento-chave naquela que é verdadeiramente uma luta global. Estas nações são o calcanhar de Aquiles do comunismo. Todavia, para os católicos, a questão da consciência é muito mais grave do que os problemas políticos. Os católicos têm a obrigação de ajudar os irmãos mártires por detrás da Cortina de Ferro. 

Tendo em conta o clamoroso silêncio de Roma, fazemos um apelo à opinião pública ocidental, e em particular à opinião pública católica, para protestar contra o que está a acontecer na Ucrânia. Da atitude da opinião pública ocidental dependerá o futuro da Ucrânia e do mundo.     

«Através de ti, minha Ruténia, espero converter o Oriente».

Assim falou a Roma Católica, a Roma dos Santos e dos Mártires, a Roma eterna, pela boca do Papa Urbano VIII no acto de beatificação de São Josafat[22].

Rezemos pelos nossos irmãos ucranianos com as palavras de São Luís Maria Grignion de Montfort na Oração Abrasada:

«A vossa divina lei é transgredida, o vosso Evangelho desprezado, abandonada a vossa religião; torrentes de iniquidade inundam toda a terra e arrastam até os vossos servos, a terra toda está desolada.

Desolatione desolata est omnis terra; a impiedade está sobre um trono; o vosso santuário é profanado e a abominação chegou até ao lugar santo. Deixareis tudo assim ao abandono, meu justo Senhor, Deus das vinganças? Será que, no fim, tudo se tornará como Sodoma e Gomorra? Ficareis calado para sempre? Tudo continuareis a suportar para sempre?

Acaso não há-de ser feita a vossa vontade, assim na terra como no céu, e não há-de vir o vosso reino? Acaso não mostrastes já antecipadamente a alguns dos vossos amigos uma futura renovação da vossa Igreja? Não se devem os Judeus converter à verdade? Não é isto que a Igreja aguarda? Não vos gritam todos os santos do céu: justiça, vindica?

Não vos dizem todos os justos da terra: amen, veni, Domine? Todas as criaturas, até as mais insensíveis, gemem sob o peso dos inumeráveis pecados da Babilónia e pedem a vossa vinda para que todas as coisas sejam restabelecidas».    

 

Através de Tradizione, Famiglia, Proprietà (originalmente escrito em 1977)

FONTE: DIES IRAE

[1] Plinio Corrêa de Oliveira, La libertà della Chiesa nello Stato comunista, Il Tempo, Roma, 1963.

[2] H. Hoffman, “Comment les Chefs d’Églises préfèrent Cesar à Dieu”, Catacombes, n. 28, Janeiro de 1974.

[3] The New York Times, 18 de Setembro de 1973.

[4] Isto, que na altura do presente artigo (1977) era apenas uma hipótese, está agora plenamente demonstrado. Trata-se do Acordo de Metz, entre a Santa Sé e a igreja ortodoxa russa, assinado a 13 de Agosto de 1962, que comprometia a Igreja a não condenar o comunismo em troca da participação de bispos “ortodoxos” no Concílio.

[5] Gianfranco Svidercoschi, Storia del Concilio, Milano 1967, pp. 601-607.

[6] Georges Dejaifve, Civilità Cattolica, vol. IV, 1964, pp. 461-462.

[7] Catacombes, Maio de 1972.

[8] Ulisse Floridi, S.J., Mosca e il Vaticano, pp. 291-292.

[9] The Brooklyn Tablet, 17 de Julho de 1975.

[10] Vasyl Markus, Religion and Nationality – the Uniates of Ukraine, p. 110.

[11] Ulisse Floridi, S.J., op. cit., p. 293.

[12] Daria Kuzyk, Religious Genocide, Society for the Patriarchate, Londres 1976, p. 70.

[13] Eva Piddubechesen, And Bless thy Inheritance, Eric Hugo Co., Schenectady, N.Y. 1970, pp. 48-49 .

[14] Bohdan Bosiurkiw, “The Orthodox and the Soviet Regime in Ukraine,” Canadian Slavonic Papers, vol. XIV, n. 2, Toronto 1972, pp. 191, 211.

[15] “Manifesto of the Orthodox Action  Movement in Western Europe,” Catecombes, n . 32, 15 de Maio de 1974.

[16] Newsweek, 6 de Dezembro de 1971.

[17] L’Osservatore Romano, 4 de Julho de 1975.

[18] The Ukrainian Herald, n. 7-8, p. 159.

[19] “Die Ukrainische Kirche lebt”, Der Fels, Regensburg, n. 5, 1972, pp. 146- 149.

[20] Svoboda, Jersey City, 14 de Junho de 1975.

[21] Vistiy Rymu, Rik 9, n. 16-17, Roma Dezembro de 1971.

[22] Miroslav Zabunka e Leonid Rudnytzky, The Ukrainian Catholic Church: 1945-1975, p. 9.

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