CARTA ENCÍCLICA
QUADRAGESIMO ANNO
DE SUA SANTIDADE
PAPA PIO XI
AOS VENERÁVEIS IRMÃOS,
PATRIARCAS, PRIMAZES, ARCEBISPOS,
BISPOS E DEMAIS ORDINÁRIOS
EM PAZ E COMUNHÃO COM A SÉ APOSTÓLICA
BEM COMO A TODOS OS FIÉIS DO ORBE CATÓLICO
SOBRE A RESTAURAÇÃO E APERFEIÇOAMENTO
DA ORDEM SOCIAL EM CONFORMIDADE COM
A LEI EVANGÉLICA NO XL ANIVERSÁRIO
DA ENCÍCLICA DE LEÃO XIII «RERUM NOVARUM»
Veneráveis Irmãos e Amados
Filhos Saúde e Bênção Apostólica
No 40º aniversário da magistral encíclica de Leão XIII « Rerum novarum », todo o orbe católico, movido dos sentimentos da mais viva gratidão, propõe-se comemorá-la com a devida solenidade.
A Encíclica « Rerum novarum ».
Já antes, em certo modo, haviam preparado o caminho àquele documento de solicitude pastoral, as encíclicas do mesmo Nosso Predecessor sobre o princípio da sociedade humana que é a família e o santo sacramento do Matrimónio, (1) sobre a origem da autoridade civil, (2) e a devida ordem das suas relações com a Igreja, (3) sobre os principais deveres dos fieis como cidadãos, (4) contra os princípios do socialismo, (5) contra as falsas teorias da liberdade humana, (6) e outras do mesmo género que plenamente revelaram o modo de pensar de Leão XIII; contudo a encíclica « Rerum novarum » distingue-se das demais por ter dado a todo o género humano regras seguríssimas para a boa solução do espinhoso problema do consórcio humano, a chamada « Questão social », precisamente quando isso mais oportuno e necessário era.
Sua ocasião
Com efeito ao fim do século XIX, em consequência de um novo género de economia, que se ia formando, e dos grandes progressos da indústria em muitas nações, aparecia a sociedade cada vez mais dividida em duas classes: das quais uma, pequena em número, gozava de quase todas as comodidades que as invenções modernas fornecem em abundância; ao passo que a outra, composta de uma multidão imensa de operários, a gemer na mais calamitosa miséria, debalde se esforçava por sair da penúria, em que se debatia.
Com tal estado de coisas facilmente se resignavam os que, nadando em riquezas, o supunham efeito inevitável das leis económicas, e por isso queriam que se deixasse à caridade todo o cuidado de socorrer os miseráveis; como se a caridade houvesse de capear as violações da justiça, não só toleradas, mas por vezes até impostas pelos legisladores. Ao contrário só a duras penas o toleravam os operários, vítimas da fortuna adversa, e tentavam sacudir o jugo duríssimo: uns, levados na fúria de maus conselhos, aspiravam a tudo subverter, os outros, a quem a educação cristã demovia d’esses maus intentos, estavam contudo firmemente convencidos de que nesta matéria era necessária uma reforma urgente e radical.
O mesmo pensavam todos os católicos, sacerdotes ou leigos, que, impelidos por uma caridade admirável, já de há muito trabalhavam em aliviar a miséria imerecida dos operários, não podendo de modo nenhum persuadir-se de que uma diferença tão grande e tão iníqua na distribuição dos bens temporais correspondesse verdadeiramente aos desígnios sapientíssimos do Criador.
Procuravam eles com toda a lealdade um remédio eficaz a esta lamentável desordem da sociedade e uma firme defesa contra os perigos ainda maiores que a ameaçavam; mas tal é a fraqueza mesmo das melhores inteligências humanas, que ora se viam repelidos como inovadores perigosos, ora obstaculados por companheiros de acção mas de ideais diversos: e assim hesitantes entre várias opiniões, nem sabiam para onde voltar-se.
No meio de tão grande luta de espíritos, quando de uma parte e doutra ferviam disputas nem sempre pacíficas, todos os olhos se volviam, como tantas outras vezes, para a cátedra de Pedro, para este depósito sagrado de toda a verdade, donde se difundem pelo mundo inteiro palavras de salvação; e todos, sociólogos, patrões, operários, acorrendo com frequência desusada aos pés do Vigário de Cristo na terra, suplicavam a uma voz que se lhes indicasse enfim o caminho seguro.
Prudentíssimo como era o Pontífice, tudo ponderou longamente diante de Deus, chamou a conselho homens de reconhecida ciência, pesou bem as razões por uma parte e outra, e finalmente movido « pela consciência do múnus Apostólico », (7) para que não parecesse, que descurava os seus deveres calando por mais tempo, (8) decidiu-se a falar a toda a Igreja de Cristo, antes a todo o género humano, no exercício do magistério divino a ele confiado.
Ressoou por tanto no dia 15 de maio de 1891 aquela voz há tanto suspirada, ressoou robusta e clara, sem que a intimidassem as dificuldades, nem a enfraquecesse a velhice, e ensinou à família humana, a empreender novos caminhos no terreno social.
Tópicos principais
Conheceis, veneráveis Irmãos e amados Filhos, e sabeis perfeitamente a admirável doutrina, que tornou a encíclica « Rerum novarum » digna de eterna memória. Nela o bom Pastor, condoído ao ver « a miserável e desgraçada condição, em que injustamente viviam » tão grande parte dos homens, tomou animoso a defesa dos operários, que « as condições do tempo tinham entregado e abandonado indefesos à crueldade de patrões desumanos e à cobiça de uma concorrência desenfreada ».(9) Não pediu auxílio nem ao liberalismo nem ao socialismo, pois que o primeiro se tinha mostrado de todo incapaz de resolver convenientemente a questão social, e o segundo propunha um remédio muito pior que o mal, que lançaria a sociedade em perigos mais funestos.
O Pontífice no uso do seu direito e convencido de que a ele principalmente fora confiada a salvaguarda da religião e de tudo o que com ela está estreitamente vinculado, pois se tratava de um problema « a que não se podia encontrar solução plausível sem o auxílio da religião e da Igreja », (10) apoiando-se unicamente nos princípios imutáveis tirados do tesoiro da recta razão e da revelação divina, confiadamente e « como quem tinha autoridade », (11) expôs com inexcedível clareza e proclamou não só « os direitos e os deveres que devem reger as relações mútuas dos ricos e dos proletários, dos capitalistas e dos trabalhadores », (12) mas também a parte que deviam tomar a Igreja, a autoridade civil e os próprios interessados na solução dos conflitos sociais.
Nem a voz Apostólica ressoou debalde; antes, com assombro a ouviram e a aplaudiram com suma benevolência, além dos filhos obedientes da Igreja, muitos dos que viviam longe da verdade e da unidade da fé e quase todos os que depois se ocuparam de sociologia e economia tanto no estudo teórico como na pública legislação.
Foram porém os operários cristãos os que com maior alegria acolheram a encíclica ao verem-se assim vingados e defendidos pela suprema Autoridade da terra e com eles todas as almas generosas, que, já de há muito empenhadas em aliviar a sorte dos operários, não tinham encontrado senão indiferença em muitos, suspeitas odientas e até manifesta hostilidade em muitos outros. E é por isso que todos estes tiveram depois em tanta estima aquelas letras Apostólicas, que todos os anos costumam celebrar-lhe a memória com demonstrações de gratidão diversas nas diversas terras.
No meio de tanta harmonia de sentimentos não faltaram vozes discordantes de alguns, mesmo de católicos, a quem a doutrina de Leão XIII, tão nobre e elevada, tão nova para humanos ouvidos pareceu suspeita e até escandalizou. Ela assaltava ousadamente e derribava os ídolos do liberalismo, não fazia caso de preconceitos inveterados, prevenia inopinadamente o futuro: que muito que os rotineiros desdenhassem aprender esta nova filosofia social e os tímidos receassem subir a tais alturas, ao passo que outros, admirando aquela luz, a reputavam perfeição ideal, mais para desejar que para realizar?
Fim da presente Encíclica
Por isso é que Nós, veneráveis Irmãos e amados Filhos, agora que todo o mundo e sobretudo os operários católicos, que de toda a parte acodem a esta Alma Cidade, comemoram com tanta solenidade e entusiasmo o quadragésimo aniversário da encíclica « Rerum novarum », julgamos dever Nosso aproveitar esta ocasião para recordar os grandes. benefícios que dela advieram à Igreja católica e a toda a humanidade; defender a doutrina social e económica de tão grande Mestre satisfazendo a algumas dúvidas, desenvolvendo mais e precisando alguns pontos; finalmente, chamando a juízo o regime económico moderno e instaurando processo ao socialismo, apontar a raiz do mal estar da sociedade contemporânea e mostrar-lhe ao mesmo tempo a única via de uma restauração salutar, que é a reforma cristã dos costumes. Eis os três pontos da presente encíclica.
I. BENEFÍCIOS DA «RERUM NOVARUM »
Para começarmos pelo que em primeiro lugar propusemos, seguindo a advertência de S. Ambrósio, (13) que a gratidão é o primeiro e mais imperioso dos deveres, não podemos conter-Nos que não demos a Deus as maiores acções de graças pelos imensos benefícios que da encíclica de Leão XIII advieram à Igreja e a todo o género humano. Se Nós os quiséssemos enumerar, mesmo de passagem, deveríamos por assim dizer, recordar toda a história dos últimos quarenta anos, na parte relativa à questão social. Mas tudo se pode reduzir a três pontos, conforme ao tríplice concurso que o Nosso Predecessor desejava, para poder levar a efeito a sua obra grandiosa de restauração.
1. – ACÇÃO DA IGREJA
Em primeiro lugar o que da Igreja se podia esperar, declarou-o eloquentemente o mesmo Leão XIII : « A Igreja é a que aufere do Evangelho a única doutrina capaz de pôr termo à luta, ou ao menos de a suavizar, tirando-lhe toda a aspereza; é ela que com seus preceitos instrui as inteligências e se esforça por moralizar a vida dos indivíduos; que com utilíssimas instituições melhora continuamente a sorte dos proletários ». (14)
a) No campo doutrinal
Ora a Igreja não deixou estagnar no seu seio esta linfa preciosa, senão que a fez correr em abundância para o bem comum da suspirada paz. O próprio Leão XIII e seus Sucessores não cessaram de proclamar de viva voz e por escrito a doutrina social e económica da encíclica « Rerum novarum », urgindo-a e aplicando-a segundo a ocasião às circunstâncias de tempo e lugar, com aquela caridade paterna e constância pastoral, que sempre os distinguiu na defesa dos pobres e desvalidos. (15) Nem foi outro o proceder de grande parte do Episcopado, que com assiduidade e maestria declarou e comentou a mesma doutrina, adaptando-a às condições dos diversos países, segundo a mente e as directivas da Santa Sé. (16)
Não é pois de admirar, que muitos sábios quer eclesiásticos quer leigos se aplicassem diligentemente, seguindo a orientação dada pela Igreja, a desenvolver a ciência social e económica, conforme às exigências do nosso tempo, levados sobretudo do desejo de tornar a doutrina inalterada e inalterável da Igreja mais eficaz para remediar as necessidades modernas.
Foi assim que à luz e sob o impulso da encíclica de Leão XIII nasceu uma verdadeira ciência social católica, cultivada e enriquecida continuamente pela indefessa aplição d’aquêles varões escolhidos, que chamámos cooperadores da Igreja. Nem eles a deixam escondida na sombra de simples discussões eruditas, mas expõem-na à luz do sol em públicas palestras, como o demonstram exuberantemente os cursos, tão úteis e tão frequentados, instituídos nas universidades católicas, academias e seminários, os congressos ou « semanas sociais » celebrados frequentemente e com grande fruto, os círculos de estudos, os escritos repletos de oportuna e sã doutrina, por toda a parte e por todos os modos divulgados.
E não são estes apenas os frutos do documento Leoniano : a doutrina ensinada na encíclica « Rerum novarum » impôs-se insensivelmente à atenção d’aqueles mesmos que, separados da unidade católica, não reconhecem a autoridade da Igreja ; e assim os princípios de sociologia católica entraram pouco a pouco no património de toda a sociedade humana ; e as verdades eternas, tão altamente proclamadas pela santa memória do Nosso Predecessor, vemo-las frequentemente citadas e defendidas não só em jornais e livros mesmo acatólicos, mas até nos parlamentos e tribunais.
E quando após a grande guerra os governantes das principais potências, trataram de restabelecer a paz sobre as bases de uma completa renovação social, entre as leis, feitas para regular o trabalho dos operários segundo a justiça e a equidade, decretaram muitas tão conformes com os princípios e directivas de Leão XIII, que parecem intencionalmente copiadas. É que a encíclica « Rerum novarum » é um documento tão notável, que bem se pode dizer com palavras de Isaias : « Estandarte arvorado à face das nações »! (17)
b) Na prática
Assim se iam divulgando cada vez mais à luz das investigações científicas os preceitos de Leão XIII ; ao mesmo tempo passava-se à sua aplicação prática. E primeiramente com actividade e benevolência fizeram-se todos os esforços para. elevar aquela classe, que os recentes progressos da indústria tinham aumentado desmedidamente sem lhe darem na sociedade o lugar que lhe competia, e que por isso jazia em quase completa desconsideração e abandono : falamos dos operários., a cuja cultura zelosos sacerdotes de um e outro clero, apesar de sobrecarregados com outros cuidados pastorais, se aplicaram desde logo, sob a guia dos respectivos Prelados e com grande fruto d’aquelas almas. Este trabalho constante vara embeber de espírito cristão as almas dos operários contribuiu também muitíssimo para lhes dar a verdadeira consciência da própria dignidade, e para habilitá-los, pela compreensão clara dos direitos e deveres da sua classe, a progredir honrada e felizmente no campo social e económico, a ponto de servirem de guias aos outros.
Daqui os meios de subsistência melhor assegurados e em maior cópia : por quanto não só começaram a multiplicar-se segundo as exortações do grande Pontífice as obras de caridade e beneficência, mas também foram surgindo por toda a parte e cada vez mais numerosas as associações de mútuo socorro para operários, artistas, agricultores e jornaleiros de toda a espécie, fundadas segundo os conselhos e directivas da Igreja e ordinariamente sob a direcção do clero.
2. – ACÇÃO DA AUTORIDADE CIVIL
Quanto à autoridade civil, Leão XIII, ultrapassando com audácia os confins impostos pelo liberalismo, ensina impertérrito, que ela não deve limitar-se a tutelar os direitos e a ordem pública, mas antes fazer o possível « para que as leis e instituições sejam tais… , que da própria organização do Estado dimane espontaneamente a prosperidade da nação e dos indivíduos ». (18) Deve sim deixar-se tanto aos particulares como às famílias a justa liberdade de acção, mas contanto que se salve o bem comum e não se faça injúria a ninguém. Aos governantes compete defender toda a nação e os membros que a constituem, tendo sempre cuidado especial dos fracos e deserdados da fortuna ao proteger os direitos dos particulares. « Por quanto a classe abastada, munida dos seus próprios recursos, carece menos do auxílio público; pelo contrário a classe indigente, desprovida de meios pessoais, esteia-se sobre tudo na protecção do Estado. Por conseguinte deve ele atender com particular cuidado e providência aos operários, visto serem eles do número da classe pobre ». (19)
Não negamos que alguns governantes, já antes da encíclica de Leão XIII, tivessem provido às necessidades mais urgentes dos obreiros e reprimido as injustiças de maior vulto a estes feitas. Mas foi só depois que a palavra Apostólica ressoou ao mundo inteiro desde a cátedra de Pedro, que os governos, capacitando-se mais da sua missão, se aplicaram a desenvolver uma política social mais activa.
E na verdade, em quanto vacilavam os princípios do liberalismo, que havia muito paralisavam a obra eficaz dos governos, a encíclica « Rerum novarum» produziu no seio das nações uma grande corrente favorável a uma política francamente social, e de tal modo excitou os melhores católicos a cooperar com as autoridades, que não raro foram eles os defensores mais ilustres da nova legislação nos próprios parlamentos. Mais ainda : foram ministros da Igreja compenetrados da doutrina de Leão XIII que propuseram às câmaras muitas das leis sociais recentemente promulgadas, e que depois mais urgiram e promoveram a sua execução.
Deste contínuo e indefesso trabalho nasceu aquela jurisprudência completamente desconhecida nos séculos passados, que se propõe defender com ardor os sagrados direitos do operário, provenientes da sua dignidade de homem e de cristão : de facto estas leis protegem a alma, a saúde, as forças, a família, as casas, as oficinas, o salário, abrangem os acidentes de trabalho, numa palavra, tudo aquilo que interessa a classe trabalhadora, principalmente as mulheres e crianças. E se uma tal legislação não condiz de todo nem em toda a parte com as normas de Leão XIII, não se pode contudo negar haver nela muitas reminiscências da encíclica « Rerum novarum » e que à mesma por conseguinte se deve atribuir em grande parte a melhorada condição dos operários.
3. – ACÇÃO DOS INTERESSADOS
Mostra enfim muito prudentemente o Pontífice, que os patrões e os próprios operários podem fazer muito nesta matéria, « com as instituições destinadas a levar auxílio oportuno aos indigentes e a aproximar mais uma classe da outra ». (20) Entre estas dá Leão XIII o primeiro lugar às associações que abrangem quer somente os operários, quer operários e patrões; e alarga-se em recomendá-las e ilustrá-las, declarando a sua natureza, razão de ser, conveniência, direitos, deveres, leis, com sabedoria verdadeiramente admirável.
Nem estes ensinamentos podiam vir em ocasião mais oportuna : com efeito nesse tempo os que tinham na mão em muitas nações o leme do Estado, totalmente impregnados de liberalismo, não só não eram favoráveis às associações operárias, mas até abertamente as hostilizavam ; e quando reconheciam de boa vontade e tutelavam instituições análogas entre outras classes, negavam com injustiça flagrante o direito natural de associação àqueles, que mais necessitavam dele, para se defender das vexações dos poderosos ; nem faltou ainda mesmo entre os católicos quem visse de maus olhos, acoimando-os de socialistas ou anárquicos, os esforços dos operários em associar-se.
A) Associações operárias
São por tanto dignas dos maiores encómios as normas emanadas da autoridade de Leão XIII, que lograram derribar tais obstáculos, e desfazer tais suspeitas ; mas tornaram-se ainda mais importantes, por terem exortado os operários cristãos a associarem-se segundo os vários misteres, ensinando-lhes o meio de o conseguirem, e por terem ainda consolidado no caminho do dever muitos, a quem as associações socialistas seduziam fortemente, apregoando-se a si mesmas únicos defensores e propugnadores dos humildes e oprimidos.
Quanto à erecção destas associações, a encíclica « Rerum novarum» observa muito a propósito, « que as corporações devem organizar-se e governar-se de modo que forneçam a cada um de seus membros os meios mais fáceis e expeditos para conseguirem seguramente o fim proposto, isto é : a maior cópia possível, para cada um, de bens do corpo, do espírito e da fortuna »; porém é claro « que sobretudo se deve ter em vista, como mais importante, a perfeição moral e religiosa; e que por ela se deve orientar todo o regulamento destas sociedades ». (21) Com efeito « constituída assim a religião como fundamento de todas as leis sociais, não é difícil determinar as relações que devem existir entre os membros para que possam viver em paz e prosperar . (22)
Desejosos de levar a efeito a aspiração de Leão XIII, muitos do clero e do laicado dedicaram-se por toda a parte com louvável empenho a fundar estas associações; as quais protegidas pela religião, embebidas do seu espírito, formaram operários verdadeiramente cristãos, que uniam em boa harmonia o exercício diligente da própria arte com os preceitos salutares da religião e defendiam eficaz e tenazmente os próprios direitos e interesses temporais, tendo sempre em conta a justiça e o sincero desejo de colaborar com as outras classes para a restauração cristã de toda a vida social.
Diverso segundo as várias circunstâncias locais foi o esforço em realizar os desígnios e as normas de Leão XIII. De facto nalgumas regiões a mesma associação abraçava todos os fins visados pelo Pontífice ; noutras ao contrário chegou-se a uma certa divisão de actividade; e formaram-se associações distintas, umas para zelar os direitos e interesses legítimos dos sócios nos contractos de trabalho, outras para organizar o mútuo auxílio económico, outras finalmente para o desempenho dos deveres religiosos e morais e de outras obrigações análogas.
Este segundo método prevaleceu sobretudo nos países, onde as leis pátrias, as instituições económicas, ou a discórdia de inteligências e corações tão deploravelmente enraizada na sociedade moderna ou ainda a, necessidade urgente de opor uma frente única aos inimigos da ordem, impediam aos católicos a fundação de sindicatos próprios. Num tal estado de coisas os católicos vêem-se quase obrigados a inscrever-se em sindicatos neutros, uma vez que façam profissão de justiça e equidade e deixem aos sócios católicos plena liberdade de obedecer à própria consciência e cumprir os preceitos da Igreja. Pertence aos Bispos, se reconhecerem que tais associações são impostas pelas circunstâncias e não oferecem perigo para a religião, permitir que os operários católicos se inscrevam nelas, observando contudo a este respeito as normas e precauções recomendadas por Nosso Predecessor Pio X, de santa memória. (23) Primeira e a mais importante é, que ao lado dos sindicatos existam sempre outros grupos com o fim de dar a seus membros uma séria formação religiosa e moral, para que eles depois infiltrem nas organizações sindicais o bom espírito que deve animar toda a sua actividade. Sucederá assim que estes grupos exercerão benéfica influencia mesmo fora do próprio âmbito.
Por isso deve atribuir-se à encíclica Leoniana o terem florescido tanto por toda a parte estas associações operárias, que já hoje, apesar de serem, infelizmente, ainda inferiores em número às dos socialistas e comunistas, agrupam notável multidão de sócios e podem defender energicamente os direitos e aspirações legítimas do operariado católico e propugnar os salutares princípios da sociedade cristã, quer fronteiras a dentro da pátria, quer em congressos internacionais.
B) Associações não operárias
Acresce ao sobredito, que a doutrina relativa ao direito natural de associação tão sabiamente exposta e com tanto valor defendida por Leão XIII, começou naturalmente a aplicar-se também a associações não operárias; pelo quê deve-se em grande parte mesma encíclica, que até entre os agricultores e outros membros da classe média se vejam florescer e multiplicar de dia para dia estas utilíssimas corporações e outros institutos similares, que aliam felizmente os interesses económicos à formação espiritual.
C) Associações de industriais
E se não pode dizer-se o mesmo das associações que o Nosso Predecessor tão ardentemente desejava ver instituídas entre patrões e industriais, e que lamentamos sejam tão poucas, não deve isso atribuir-se completamente à má vontade dos homens, mas a dificuldades muito maiores que se opõem à sua realização, dificuldades que Nós muito bem conhecemos e avaliamos na devida conta. Temos porém segura esperança de que para breve até essas dificuldades desaparecerão e saudamos já com íntimo júbilo da alma alguns esforços envidados com vantagem neste particular, cujos frutos abundantes prometem messe ainda mais copiosa para o futuro. (24)
CONCLUSÃO: A « MAGNA CHARTA » DOS OPERÁRIOS
Todos estes benefícios da encíclica de Leão XIII que Nós, veneráveis Irmãos e amados Filhos, acabamos de recordar, acenando-os mais do que descrevendo-os, são tais e tão grandes, que mostram claramente como o imortal documento não era apenas a expressão de um ideal magnífico mas irrealizável. Ao contrário o Nosso ilustre Predecessor hauriu no Evangelho, e portanto numa fonte sempre viva e vivificante a doutrina que pode, senão resolver já de vez, ao menos abrandar muito a luta fatal em que mutuamente se digladia a família humana. Os frutos de salvação recolhidos pela Igreja de Cristo e por todo o género humano, com a graça de Deus, mostram bem que a boa. semente, espalhada há quarenta anos em tão larga cópia, caiu em grande parte numa terra fértil ; nem é temeridade afirmar que a encíclica de Leão XIII se demonstrou com a longa experiência do tempo a « Magna Charta » em que deve basear-se como em sólido fundamento toda a actividade cristã no campo social. Por isso os que mostram fazer pouco da mesma encíclica e da sua comemoração, estes ou blasfemam do que não conhecem, ou não percebem nada do que conhecem, ou, se percebem, praticam uma solene injustiça, e ingratidão.
Mas como durante estes anos surgiram dúvidas sobre a recta interpretação de vários passos da encíclica ou sobre as consequências a deduzir deles, dando ocasião entre os próprios católicos a discussões nem sempre amigáveis ; e como por outra parte as novas exigências do nosso tempo e as mudadas condições sociais tornam necessária uma aplicação mais esmerada da doutrina Leoniana e mesmo algumas adições, aproveitamos de boa vontade esta ocasião, para, em virtude do Nosso múnus Apostólico, que a todos Nos faz devedores, (25) satisfazermos, quanto é da Nossa parte, a estas dúvidas e exigências.
II.
AUTORIDADE DA IGREJA NA QUESTÃO SOCIAL E ECONÓMICA
Mas antes de entrarmos neste assunto, devemos pressupor, o que já provou abundantemente Leão XIII, que julgar das questões sociais e económicas é dever e direito da Nossa suprema autoridade. (26) Não foi é certo confiada à Igreja, a missão de encaminhar os homens à conquista de uma felicidade apenas transitória e caduca, mas da eterna; antes « a Igreja crê não dever intrometer-se sem motivo nos negócios terrenos ». (27) O que não pode, é renunciar ao ofício de que Deus a investiu, de interpor a sua autoridade não em assuntos técnicos, para os quais lhe faltam competência e meios, mas em tudo o que se refere à moral. Dentro deste campo, o depósito da verdade que Deus Nos confiou e o gravíssimo encargo de divulgar toda a lei moral, interpretá-la e urgir o seu cumprimento oportuna e importunamente, sujeitam e subordinam ao Nosso juízo a ordem social e as mesmas questões económicas.
Pois ainda que a economia e a moral « se regulam, cada uma no seu âmbito, por princípios próprios », (28) é erro julgar a ordem económica e a moral tão encontradas e alheias entre si, que de modo nenhum aquela dependa desta. Com efeito, as chamadas leis económicas, deduzidas da própria natureza das coisas e da índole do corpo e da alma, determinam os fins que a actividade humana se não pode propor, e os que pode procurar com todos os meios no campo económico ; e a. razão mostra claramente, da mesma natureza das coisas e da natureza individual e social do homem, o fim imposto pelo Criador a toda a ordem económica.
Por sua parte a lei moral manda-nos prosseguir tanto o fim supremo e último em todo o exercício da nossa actividade, como, nos diferentes domínios por onde ela se reparte, os fins particulares impostos pela natureza, ou melhor, por Deus autor da mesma; subordinando sempre estes fins aquele, como pede a boa ordem. Se seguirmos fielmente esta regra, sucederá, que os fins particulares da economia, sejam eles individuais ou sociais, se inserirão facilmente na ordem geral dos fins, e nós subindo por eles, como por uma escada, chegaremos ao fim último de todos os seres, que é Deus, bem supremo e inexaurível para si e para nós.
1. – DO DIREITO DE PROPRIEDADE
Para vir agora ao particular, começamos pelo direito de propriedade. Sabeis, veneráveis Irmãos e amados Filhos, que Leão XIII de feliz memória defendeu tenazmente o direito de propriedade contra as aberrações dos socialistas do seu tempo, mostrando que a destruição do domínio particular reverteria, não em vantagem, mas em ruína da classe operária. Mas como não falta quem com flagrante injustiça calunie o Sumo Pontífice e a Igreja de ter zelado e zelar somente os interesses dos ricos contra os proletários, e os mesmos católicos não concordam na interpretação do genuíno e verdadeiro modo de pensar de Leão XIII, pareceu-Nos bem vingar de tais calúnias a sua doutrina que é a católica e defendê-la de falsas interpretações.
Sua índole individual e social
Primeiramente tenha-se por certo, que nem Leão XIII, nem os teólogos, que ensinaram seguindo a doutrina e direcção da Igreja, negaram jamais ou puseram em dúvida a dupla espécie de domínio, que chamam individual e social, segundo diz respeito ou aos particulares ou ao bem comum ; pelo contrário foram unânimes em afirmar que a natureza ou o próprio Criador deram ao homem o direito do domínio particular, não só para que ele possa prover às necessidades próprias e da família, mas para que sirvam verdadeiramente ao seu fim os bens destinados pelo Criador a toda a família humana : ora nada disto se pode obter, se não se observa uma ordem certa e bem determinada.
Deve portanto evitar-se cuidadosamente um duplo escolho, em que se pode cair. Pois como o negar ou cercear o direito de propriedade social e pública precipita no chamado « individualismo » ou dele muito aproxima, assim também rejeitar ou atenuar o direito de propriedade privada ou individual leva rapidamente ao « colectivismo » ou pelo menos à necessidade de admitir-lhe os princípios. Sem a luz destas verdades ante os olhos, cair-se-á depressa nas sirtes do modernismo moral, jurídico e social, que denunciámos com letras Apostólicas no princípio do Nosso Pontificado; (29) tenham-no presente sobretudo aqueles espíritos desordeiros, que com infames calúnias ousam acusar a Igreja de ter permitido, que se introduzisse na doutrina teológica o conceito pagão do domínio, ao qual desejam a todo o custo substituir outro, por eles com pasmosa ignorância apelidado de cristão.
Obrigações inerentes ao domínio
E a fim de pôr termo às controvérsias, que acerca do domínio e deveres a ele inerentes começaram a agitar-se, note-se em primeiro lugar o fundamento assente por Leão XIII, de que o direito de propriedade é distinto do seu uso. (30) Com efeito, a chamada justiça comutativa obriga a conservar inviolável a divisão dos bens e a não invadir o direito alheio excedendo os limites do próprio domínio; que porém os proprietários não usem do que é seu, senão honestamente, é da alçada não da justiça, mas de outras virtudes, cujo cumprimento « não pode urgir-se por vias jurídicas ». (31) Pelo quê sem razão afirmam alguns, que o domínio e o seu honesto uso são uma e a mesma coisa; e muito mais ainda é alheio à verdade dizer, que se extingue ou se perde o direito de propriedade com o não uso ou abuso dele.
Prestam portanto grande serviço à boa causa e são dignos de todo o elogio os que, salva a concórdia dos ânimos e a integridade da doutrina tradicional da Igreja, se empenham em definir a natureza íntima destas obrigações e os limites, com que as necessidades do convívio social circunscrevem tanto o direito de propriedade, como o uso ou exercício do domínio. Pelo contrário muito se enganam e erram aqueles, que tentam reduzir o domínio individual a ponto de o abolirem praticamente.
Poderes do Estado
Efectivamente, que deva o homem atender não só ao próprio interesse, mas também ao bem comum, deduz-se da própria índole, a um tempo individual e social, do domínio, a que nos referimos. Definir porém estes deveres nos seus pormenores e segundo as circunstâncias, compete, já que a lei natural de ordinário o não faz, aos que estão à frente do Estado. E assim a autoridade pública, iluminada sempre pela luz natural e divina, e pondo os olhos só no que exige o bem comum, pode decretar mais minuciosamente o que aos proprietários seja lícito ou ilícito no uso de seus bens. Já Leão XIII ensinou sabiamente que « Deus confiou à indústria dos homens e às instituições dos povos a demarcação da propriedade individual ». (32) E realmente o regime da propriedade não é mais imutável, que qualquer outra instituição da vida social, como o demonstra a história e Nós mesmo notámos em outra ocasião : « Que variedade de formas concretas não revestiu a propriedade desde a forma primitiva dos povos selvagens, de que ainda há hoje vestígios, até à forma de propriedade dos tempos patriarcais, e depois sucessivamente desde as diversas formas tirânicas (usamos esta palavra no seu sentido clássico), através das feudais e logo das monárquicas, até às formas existentes na idade moderna »! (33) É evidente porém que a autoridade pública não tem direito de desempenhar-se arbitrariamente desta função; devem sempre permanecer intactos o direito natural de propriedade e o que tem o proprietário de legar dos seus bens. São direitos estes, que ela não pode abolir, porque « o homem é anterior ao Estado », (34) e « a sociedade doméstica tem sobre a sociedade civil uma prioridade lógica e uma prioridade real ». (35) Eis porque o sábio Pontífice declarava também, que o Estado não tem direito de esgotar a propriedade particular com excessivas contribuições : « Não é das leis humanas, mas da natureza, que dimana o direito da propriedade individual; a autoridade pública não a pode portanto abolir : o mais que pode é moderar-lhe o uso e harmonizá-lo com o bem comum ». (36) Quando ela assim concilia o direito de propriedade com as exigências do bem comum, longe de mostrar-se inimiga dos proprietários presta-lhes benévolo apoio; de facto, fazendo isto, impede eficazmente que a posse particular dos bens, estatuída com tanta sabedoria pelo Criador em vantagem da vida humana, gere desvantagens intoleráveis e venha assim a arruinar-se : não oprime a propriedade, mas defende-a; não a enfraquece, mas reforça-a.
Deveres relativos aos rendimentos livres
Nem ficam de todo ao arbítrio do homem os seus rendimentos livres, isto é aqueles de que não precisa para sustentar a vida convenientemente e com decoro : ao contrário as sagradas Escrituras e os santos Padres da Igreja intimam continuamente e com a maior clareza aos ricos o gravíssima dever da esmola e de praticar a beneficência e magnificência. Empregar grandes capitais disponíveis para oferecer em abundância trabalho lucrativo, com tanto que este se empregue em obras realmente úteis, não só não é vício ou imperfeição moral, mas até se deve julgar acto preclaro da virtude da magnificência muito em harmonia com as necessidades dos tempos, como se deduz argumentando dos princípios do Doutor Angélico. (37)
Títulos de aquisição do domínio
Títulos de aquisição do domínio são a ocupação de coisas sem dono, a indústria ou a chamada especificação, como o demonstram abundantemente a tradição de todos os séculos e a doutrina do Nosso Predecessor Leão XIII. De facto não faz injustiça a ninguém, por mais que alguns digam o contrário, quem se apodera de uma coisa abandonada ou sem dono; de outra parte a indústria que alguém exerce em nome próprio, e com a qual as coisas se transformam ou aumentam de valor, dá-lhe direito sobre os produtos do seu trabalho.
Capital e trabalho
Muito diversa é a condição do trabalho, que vendido a outrem se exerce em coisa alheia. A ele particularmente visava Leão XIII, quando escrevia « poder-se afirmar sem perigo de erro, que o trabalho é a fonte única da riqueza nacional ». (38) Com efeito, não vemos com os próprios olhos, que a abundância dos bens, que constituem a riqueza, se formam e brotam das mãos dos obreiros, quer trabalhem sós, quer armadas de instrumentos e máquinas, com o que aumentam admiravelmente a sua actividade? Ninguém ignora, que nunca um país se ergueu da miséria e pobreza a uma fortuna melhor e mais elevada sem a colaboração ingente de todos os cidadãos, tanto dos que dirigem o trabalho, como dos que o executam. Não é porém menos certo que estes grandes esforços seriam imiteis e vãos, que nem sequer poderiam tentar-se, se Deus Criador do universo não tivesse na sua bondade fornecido antes as matérias primas e as forças da natureza. Pois que é trabalhar, senão aplicar ou exercer as forças do corpo e do espírito nestas mesmas coisas ou por meio delas? Exige porém a lei natural ou a vontade de Deus por ela promulgada, que se mantenha a devida ordem na aplicação dos bens naturais aos usos humanos : ora semelhante ordem consiste em ter cada coisa o seu dono. D’aqui vem que, a não ser que um trabalhe no que é seu, deverão aliar-se as forças de uns com as coisas dos outros; pois que umas sem as outras nada produzem. Isto precisamente tinha em vista Leão XIII, quando escrevia : « de nada vale o capital sem o trabalho, nem o trabalho sem o capital ». (39) Por conseguinte é inteiramente falso atribuir ou só ao capital ou só ao trabalho o produto do concurso de ambos; e é injustíssimo que um deles, negando a eficácia do outro, se arrogue a si todos os frutos.
Pretensões injustas do capital
É certo que por muito tempo pôde o capital arrogar-se direitos demasiados. Todos os produtos e todos os lucros reclamava-os ele para si, deixando ao operário unicamente o bastante para restaurar e reproduzir as forças. Apregoava-se, que por fatal lei económica pertencia aos patrões acumular todo o capital, e que a mesma lei condenava e acorrentava os operários a perpétua pobreza e vida miserável. E bem verdade, que as obras nem sempre estavam de acordo com semelhantes monstruosidades dos chamados liberais de Manchester : não se pode contudo negar que para elas tendia com passo certeiro e constante o regime económico e social. Por isso não é para admirar que estas opiniões erróneas e estes postulados falsos fossem energicamente impugnados, e não só por aqueles a quem privavam do direito natural de adquirir melhor fortuna.
Injustas pretensões do trabalho
De facto aos operários assim mal tratados apresentaram-se os chamados « intelectuais », contrapondo a uma lei falsa um não menos falso princípio moral : « os frutos e rendimentos, descontado apenas o que baste a amortizar e reconstituir o capital, pertencem todos de direito aos operários ». Erro mais capcioso que o de alguns socialistas, para os quais tudo o que é produtivo deve passar a ser propriedade do Estado ou « socializar-se »; mas por isso mesmo erro muito mais perigoso e próprio a embair os incautos : veneno suave que tragaram avidamente muitos, a quem o socialismo sem rebuço não pudera enganar.
Princípio directivo da justa distribuição
A premuni-los contra estes falsos princípios, com que a si próprios fechavam o caminho da justiça e da paz, deviam bastar as palavras sapientíssimas do Nosso Predecessor : « de qualquer modo que seja distribuída entre os particulares, não cessa a terra de servir à utilidade pública ». (40) O mesmo ensinámos Nós pouco antes, quando declarávamos, que a própria natureza exige a repartição dos bens em domínios particulares, precisamente a fim de poderem as coisas criadas servir ao bem comum de modo ordenado e constante. Este princípio deve ter continuamente diante dos olhos, quem não quer desviar-se da recta senda da verdade.
Ora nem toda a distribuição dos bens ou riquezas entre os homens é apta para obter totalmente ou com a devida perfeição o fim estabelecido por Deus. E necessário que as riquezas, em contínuo incremento com o progresso da economia social, sejam repartidas pelos indivíduos ou pelas classes particulares de tal maneira, que se salve sempre a utilidade comum, de que falava Leão XIII, ou, por outras palavras, que em nada se prejudique o bem geral de toda a sociedade. Esta lei de justiça social proíbe, que uma classe seja pela outra excluída da participação dos lucros. Violam-na por conseguinte tanto os ricos que, felizes por se verem livres de cuidados em meio da sua fortuna, têm por muito natural embolsarem eles tudo e os operários nada, como a classe proletária que, irritada por tantas injustiças e demasiadamente propensa a exagerar os próprios direitos, reclama para si tudo, porque fruto do trabalho das suas mãos, e combate e pretende suprimir toda a propriedade e rendas ou proventos, qualquer que seja a sua natureza e função social, uma vez que se obtenham e pela simples razão de serem obtidos sem trabalho. A este propósito cita-se às vezes o Apóstolo, lá onde diz : « quem não quer trabalhar, não coma ». (41) Citação descabida e falsa. O Apóstolo repreende os ociosos, que podendo e devendo trabalhar, não o fazem, e admoesta-nos a que aproveitemos diligentemente o tempo e as forças do corpo e do espírito, nem queiramos ser de peso aos outros, quando podemos bastar-nos a nós mesmos. Agora, que o trabalho seja o único título para receber o sustento ou perceber rendimentos, isso não o ensina, nem podia ensinar o Apóstolo. (42)
Cada um deve pois ter a sua parte nos bens materiais; e deve procurar-se que a sua repartição seja pautada pelas normas do bem comum e da justiça social. Hoje porém, à vista do contraste estridente, que há entre o pequeno número dos ultra-ricos e a multidão inumerável dos pobres, não há homem prudente, que não reconheça os gravíssimos inconvenientes da actual repartição da riqueza.
3. – REDENÇÃO DOS PROLETÁRIOS
Esta é aquela « Redenção dos proletários », que o Nosso Predecessor dizia dever procurar-se a todo o custo. O mesmo afirmamos e repetimos Nós com tanto maior energia e insistência, quanto mais frequentemente vemos votadas ao esquecimento as recomendações daquele grande Pontífice, ou porque intencionalmente se não falava, delas, ou porque as julgavam impossíveis de actuar, sendo que não só podem, mas devem realizar-se. Nem elas no nosso tempo perderam nada da aia, força e oportunidade, apesar de hoje não ser tão geral e horrendo o pauperismo, como era ao tempo de Leão XIII. Sem dúvida que a condição dos operários melhorou e se tornou mais tolerável, sobretudo nas cidades mais progredidas e populosas, onde os operários já não podem todos sem excepção ser considerados como indigentes e miseráveis. Mas desde que as artes mecânicas e a indústria moderna em pouquíssimo tempo invadiram completamente e dominaram regiões inumeráveis, tanto as terras chamadas novas, como os reinos do remoto Oriente cultivados já na antiguidade, cresceu desmesuradamente o número dos proletários pobres, cujos gemidos bradam ao céu. Acresce o ingente exército dos jornaleiros relegados à ínfima condição e sem a mínima esperança de se verem jamais senhores de um pedaço de terra; (43) se não se empregam remédios oportunos e eficazes, ficarão perpetuamente na condição de proletários.
É verdade, que a condição proletária não se deve confundir com o pauperismo; contudo basta o facto de a multidão dos proletários ser imensa, enquanto as grandes fortunas se acumulam nas mãos de poucos ricos, para provar à evidência que as riquezas, produzidas em tanta abundância neste nosso século de industrialismo, não estão bem distribuídas pelas diversas classes da sociedade.
Os operários devem poder formar um património
É pois necessário envidar energicamente todos os esforços, para que ao menos de futuro as riquezas grangeadas se acumulem em justa proporção nas mãos dos ricos, e com suficiente largueza se distribuam pelos operários; não para que estes se dêem ao ócio, — já que o homem nasceu para trabalhar como a ave para voar, — mas para que, vivendo com parcimônia, aumentem os seus haveres, aumentados e bem administrados provejam aos encargos da família; e livres assim de uma condição precária e incerta qual é a dos proletários, não só possam fazer frente a todas as eventualidades durante a vida, mas deixem ainda por morte alguma coisa, aos que lhes sobrevivem.
Toda esta doutrina já por Nosso Predecessor, não só insinuada, mas abertamente proclamada, Nós de novo e com mais insistência a inculcamos com esta Nossa encíclica : pois desenganem-se todos, que se não se põe em prática quanto antes e com todas as veras, será impossível defender eficazmente a ordem pública, a paz e a tranquilidade da sociedade humana contra os maquinadores de revoluções.
4. – O JUSTO SALÁRIO
Ora não se poderá pôr em prática, se não se procura, que os proletários, trabalhando e vivendo com parcimónia, adquiram o seu modesto pecúlio, como já acima indicamos desenvolvendo os ensinamentos de Nosso Predecessor. Mas, a não ser da própria jorna, d’onde poderá tirar esse pouco que vai economizando, o que não tem outra fonte de receita senão o seu trabalho? Entremos portanto nesta questão do salário, que Leão XIII apelidou « de grande importância », (44) declarando e desenvolvendo, onde for necessário, a sua doutrina e preceitos.
O salário não é de sua natureza injusto
E primeiramente os que dizem ser de sua natureza injusto o contrato de compra e venda do trabalho e pretendem substituí-lo por um contrato de sociedade, dizem um absurdo e caluniam malignamente o Nosso Predecessor que na encíclica « Rerum novarum » não só admite a legitimidade do salário, mas se difunde em regulá-lo segundo as leis da justiça.
Julgamos contudo que nas presentes condições sociais é preferível, onde se possa, mitigar os contratos de trabalho combinando-os com os de sociedade, como já começou a fazer-se de diversos modos com não pequena vantagem dos operários e dos patrões. Deste modo operários e oficiais são considerados sócios no domínio ou na gerência, ou compartilham os lucros.
O justo valor da paga deve ser avaliado não por um, senão por vários princípios, como sabiamente dizia Leão XIII por estas palavras : « para determinar equitativamente o salário devem ter-se em vista várias considerações ». (45)
Com estas palavras confuta a leviandade dos que pensam resolver facilmente tão momentoso problema, empregando uma única medida e essa mesma disparatada.
Erram certamente os que não receiam enunciar este princípio, que tanto vale o trabalho e tanto deve importar a paga, quanto é o valor dos seus frutos; e que por isso na locação do próprio trabalho tem o operário direito de exigir por ele tudo o que produzir. Asserção infundada, como basta a demonstrá-lo o que acima dissemos ao tratar da relação entre o trabalho e o capital.
Carácter individual e social do trabalho
Como o domínio, assim também o trabalho, sobretudo o contratado, deve considerar-se não só relativamente aos indivíduos, mas também em função da sociedade. A razão é clara. Se a sociedade não forma realmente um corpo organizado, se a ordem social e jurídica não protege o exercício da actividade, se as várias artes, dependentes como são entre si, não trabalham de concerto e não se ajudam mutuamente, se enfim e mais ainda, não se associam e colaboram juntos a inteligência, o capital, e o trabalho, não pode a actividade humana produzir fruto : logo não pode ela ser com justiça avaliada nem remunerada equitativamente, se não se tem em conta a sua natureza social e individual.
Tríplice relação do salário
Destas duas propriedades naturais do trabalho humano derivam consequências gravíssimas, pelas quais se deve regular e determinar o salário.
A) O sustento do operário e da família
Primeiro ao operário deve dar-se remuneração que baste para o sustento seu e da família. (46) É justo que toda a mais família, na medida das suas forças, contribua para o seu mantimento, como vemos que fazem as famílias dos lavradores, e também muitas de artistas e pequenos negociantes. Mas é uma iniquidade abusar da idade infantil ou da fraqueza feminina. As mães de família devem trabalhar em casa ou nas suas adjacências, dando-se aos cuidados domésticos. É um péssimo abuso, que deve a todo o custo cessar, o de as obrigar, por causa da mesquinhez do salário paterno, a ganharem a vida fora das paredes domésticas, descurando os cuidados e deveres próprios e sobretudo a educação dos filhos. Deve pois procurar-se com todas as veras, que os pais de família recebam uma paga bastante a cobrir as despesas ordinárias da casa. E se as actuais condições não permitem, que isto se possa sempre efectuar, exige contudo a justiça social, que se introduzam quanto antes as necessárias reformas, para que possa assegurar-se um tal salário a todo o operário adulto. — São pois dignos de louvor todos aqueles, que com prudente e utilíssima iniciativa tem já experimentado vários métodos para tornar o salário proporcionado aos encargos domésticos de tal modo que, aumentando estes, cresça também aquele; antes seja tal, que possa bastar a qualquer necessidade extraordinária e imprevista.
B) Situação da empresa
É preciso atender também ao empresário e a empresa no determinar a importância dos salários; seria injustiça exigir salários demasiados, que eles não pudessem pagar sem se arruinarem e arruinarem consigo os operários. Mas se a deficiência dos lucros dependesse da negligência, inércia, ou descuido em procurar o progresso técnico e económico, não seria essa uma causa justa para cercear a paga aos operários. Se porém a causa de a empresa não render quanto baste para retribuir aos operários equitativamente, são contribuições injustas ou o ver-se forçada a vender os artefactos por um preço inferior ao justo, os que assim a vexam, tornam-se réus de culpa grave; pois que privam do justo salário os trabalhadores, que forçados da necessidade se vêem obrigados a aceitar uma paga inferior à devida.
Trabalhem por conseguinte de comum acordo operários e patrões para vencer as dificuldades e obstáculos, e sejam em obra tão salutar ajudados prudente e providamente pela autoridade pública. Mas se apesar de tudo os negócios correrem mal, será então o caso de ver se a empresa poderá continuar, ou se será melhor prover aos operários de outro modo. Nessas gravíssimas conjunturas é, mais que nunca, necessário, que reine e se sinta entre operários e patrões a união e concórdia cristã.
C) Exigências do bem comum
Enfim a grandeza do salário deve ser proporcionada ao bem da economia pública. Já atrás declarámos, quanto importa ao bem comum, que os operários e oficiais possam formar um modesto pecúlio com a parte do salário economizada. Mas não podemos passar em silêncio outro ponto de não menor importância e grandemente necessário nos nossos tempos, e é, que todos os que têm vontade e forças, possam encontrar trabalho. Ora isto depende em boa parte da determinação do salário : a qual como será vantajosa, se bem feita, assim se tornará nociva, se exceder os devidos limites. Quem não sabe, que foram os salários demasiadamente pequenos ou exageradamente grandes a causa de muitos operários se verem sem trabalho? É este mal, formidavelmente agravado nos anos do nosso Pontificado, que lança aos operários nas maiores misérias e tentações, que arruína a prosperidade dos estados e põe em perigo a ordem pública, a paz e tranquilidade do mundo inteiro. É portanto contra a justiça social diminuir ou aumentar demasiadamente os salários em vista só das próprias conveniências e sem ter em conta o bem comum; e a mesma justiça exige, que em pleno acordo de inteligências e vontades, quanto seja possível, se regulem os salários de tal modo, que o maior número de operários possa encontrar trabalho e ganhar o necessário para o sustento da vida. É também importante para o mesmo efeito a boa proporção entre as diversas categorias de salários; com a qual está intimamente relacionada a justa proporção entre os preços de venda dos produtos das diversas artes, como a agricultura, a indústria, etc. Se tudo isto se observar como convêm, unir-se-ão as diversas artes e se organizarão num corpo união, prestando-se como membros mútuo e benéfico auxílio. Só então estará solidamente constituído o organismo económico e social e será capaz de obter os seus fins, quando todos e cada um tiverem todos os bens, que as riquezas naturais, a arte técnica, e a boa administração económica podem proporcionar. Estes bens devem bastar não só à estrita necessidade e à honesta comodidade, senão também a elevar o homem a um certo grau de cultura, o qual, uma vez que não falte a prudência, longe de obstar, grandemente favorece a virtude. (47)
5. – RESTAURAÇÃO DA ORDEM SOCIAL
O que fica exposto sobre a equitativa repartição dos bens e sobre o justo salário, diz respeito aos indivíduos, nem visa senão acessóriamente a ordem social, que o Nosso Predecessor Leão XIII desejou e procurou restaurar pelos princípios da sã filosofia e aperfeiçoar segundo as normas sublimes da lei evangélica.
Já alguma coisa se fez neste sentido; mas para realizar o muito que ainda está por fazer e para que a família humana colha vantagens melhores e mais abundantes, são de absoluta necessidade duas coisas : a reforma das instituições e a emenda dos costumes.
Ao falarmos na reforma das instituições temos em vista sobretudo o Estado; não porque dele só deva esperar-se todo o remédio, mas porque o vício do já referido « individualismo » levou as coisas a tal extremo, que enfraquecida e quase extinta aquela vida social outrora rica e harmónicamente manifestada em diversos géneros de agremiações, quase só restam os indivíduos e o Estado. Esta deformação do regime social não deixa de prejudicar o próprio Estado, sobre o qual recaem todos os serviços das agremiações suprimidas e que verga ao peso de negócios e encargos quase infinitos.
Verdade é, e a história o demonstra abundantemente, que, devido à mudança de condições, só as grandes sociedades podem hoje levar a efeito o que antes podiam até mesmo as pequenas; permanece contudo imutável aquele solene princípio da filosofia social : assim como é injusto subtrair aos indivíduos o que eles podem efectuar com a própria iniciativa e indústria, para o confiar à colectividade, do mesmo modo passar para uma sociedade maior e mais elevada o que sociedades menores e inferiores podiam conseguir, é uma injustiça, um grave dano e perturbação da boa ordem social. O fim natural da sociedade e da sua acção é coadjuvar os seus membros, não destruí-los nem absorvê-los.
Deixe pois a autoridade pública ao cuidado de associações inferiores aqueles negócios de menor importância, que a absorveriam demasiado; poderá então desempenhar mais livre, enérgica e eficazmente o que só a ela compete, porque só ela o pode fazer : dirigir, vigiar, urgir e reprimir, conforme os casos e a necessidade requeiram. Persuadam-se todos os que governam : quanto mais perfeita ordem jerárquica reinar entre as varias agremiações, segundo este princípio da função « supletiva » dos poderes públicos, tanto maior influência e autoridade terão estes, tanto mais feliz e lisonjeiro será o estado da nação.
Harmonia entre as diversas profissões
O primeiro objectivo que devem propor-se tanto o Estado como o escol dos cidadãos, o ponto em que devem concentrar todos os esforços, é por termo ao conflito, que divide as classes, suscitar e promover uma cordial harmonia entre as diversas profissões.
E em primeiro lugar deve a política social aplicar-se toda a reconstituí-las. Actualmente a sociedade continua num estado violento e por isso instável e vacilante, pois se funda sobre classes, que se movem por apetites desencontrados e por isso, dada a fraqueza humana, com facilidade tendem para o ódio e para a guerra.
Com efeito embora o trabalho, como muito bem expôs o Nosso Predecessor na sua encíclica , (48) não seja um simples género comercial, mas deva reconhecer-se nele a dignidade humana do operário, e não possa permutar-se como qualquer mercadoria, de facto hoje no mercado do trabalho a oferta e a procura dividem os contratadores em duas classes ou campos opostos, que encarniçadamente se digladiam. Esta grave desordem leva a sociedade à ruína, se não se lhe dá pronto e eficaz remédio. Mas a cura só então será perfeita, quando a estas classes opostas, se substituírem organismos bem constituídos, ordens ou profissões, que agrupem os indivíduos, não segundo a sua categoria no mercado do trabalho, mas segundo as funções sociais, que desempenham. Assim como as relações de vizinhança dão origem aos municípios, assim os que exercem a mesma profissão ou arte são pela própria natureza impelidos a formar colégios ou corporações; tanto que muitos julgam estes organismos autónomos, senão essenciais, ao menos naturais à sociedade civil.
E como a ordem, segundo egregiamente explica S. Tomás, (49) é a unidade resultante da disposição conveniente de muitas coisas, o corpo social não será verdadeiramente ordenado, se não há um vínculo comum, que una solidamente num só todo os membros que o constituem. Ora este princípio de unidade encontra-se, — para cada arte, na produção dos bens ou prestação dos serviços a que visa a actividade combinada de patrões e operários ocupados no mesmo ofício, — para o conjunto das profissões, no bem comum, a que todas e cada uma devem tender com esforços combinados. Esta união será tanto mais forte e eficaz, quanto mais fielmente se aplicarem os indivíduos e as próprias profissões a exercitar a sua especialidade e a assinalar-se nela.
Do que precede é fácil concluir, que no seio destas corporações estão em primeiro lugar os interesses comuns à profissão; entre os quais o mais importante é vigiar por que a actividade colectiva se oriente sempre para o bem comum de toda a sociedade. As questões, que se refiram aos interesses particulares dos patrões ou operários poder-se-ão tratar e resolver separadamente.
Apenas é preciso recordar, que os ensinamentos de Leão XIII sobre a forma do governo político se aplicam também na devida proporção aos colégios ou corporações profissionais : é lícito aos seus membros eleger a forma que lhes aprouver, com tanto que atendam às exigências da justiça e do bem comum. (50)
E como os habitantes de um município costumam formar associações autónomas para fins muito diversos, às quais cada um é livre de dar ou não o seu nome, assim os que exercem a mesma profissão, conservam a liberdade de se associarem para fins de algum modo relacionados com o exercício da sua arte. Mas porque o Nosso Predecessor tratou distinta e claramente na sua encíclica destas associações livres, basta-Nos agora inculcar um ponto : os cidadãos podem livremente não só instituir associações de direito e carácter particular, mas ainda « eleger livremente para elas aqueles estatutos e regulamentos, que julgarem mais convenientes ao fim proposto ». (51) Idêntica liberdade deve reconhecer-se às sociedades, cujo objectivo ultrapassa os confins das diversas profissões. Proponham-se as associações livres já florescentes e que tão bons frutos produzem, abrir caminho, segundo os princípios da filosofia social cristã, a estes colégios ou corporações mais vastos de que falamos, e ponham todo o empenho, cada uma na medida das suas forças, em atingir este ideal.
Princípio directivo da economia
Resta ainda outro ponto estreitamente ligado com o precedente. Como não pode a unidade social basear-se na luta de classes, assim a recta ordem da economia não pode nascer da livre concorrência de forças. Deste princípio como de fonte envenenada derivaram para a economia universal todos os erros da ciência económica « individualista »; olvidando esta ou ignorando, que a economia é juntamente social e moral, julgou que a autoridade pública a devia deixar em plena liberdade, visto que no mercado ou livre concorrência possuía um princípio directivo capaz de a reger muito mais perfeitamente, que qualquer inteligência criada. Ora a livre concorrência, ainda que dentro de certos limites é justa e vantajosa, não pode de modo nenhum servir de norma reguladora à vida económica. Aí estão a comprová-lo os factos desde que se puseram em prática as teorias de espírito individualista. Urge por tanto sujeitar e subordinar de novo a economia a um princípio directivo, que seja seguro e eficaz. A prepotência económica, que sucedeu à livre concorrência não o pode ser; tanto mais que, indómita e violenta por natureza, precisa, para ser útil a humanidade, de ser energicamente enfreada e governada com prudência; ora não pode enfrear-se nem governar-se a si mesma. Força é portanto recorrer a princípios mais nobres e elevados : à justiça e caridade sociais. E preciso que esta justiça penetre completamente as instituições dos povos e toda a vida da sociedade; é sobre tudo preciso que esse espírito de justiça manifeste a sua. eficácia constituindo uma ordem jurídica e social que informe toda a economia, e cuja alma seja a caridade. Em defender e reivindicar eficazmente esta ordem jurídica e social deve insistir a autoridade pública; e fá-lo-á com menos dificuldade se se desembaraçar daqueles encargos, que já antes declarámos não serem próprios dela.
Mais : é muito para desejar que as várias nações, pois que tanto dependem umas das outras e se completam economicamente, se dêem com todo o empenho, em união de vistas e de esforços, a promover com prudentes tratados e instituições uma vantajosa e feliz cooperação económica internacional.
Se deste modo se restaurarem os membros do corpo social e se restabelecer o princípio regulador da economia, poder-se-lhe-á aplicar de alguma forma o que o Apóstolo dizia do corpo místico de Cristo : « todo o corpo organizado e unido pelas articulações de um mútuo obséquio, segundo a medida de actividade de cada membro, cresce e se desenvolve na caridade ». (52)
Recentemente iniciou-se, como todos sabem, uma nova organização sindical e corporativa, à qual, vista a matéria desta Nossa carta encíclica não podemos deixar de Nos referir, com alguma consideração oportuna.
O Estado reconheceu juridicamente o « sindicato », dando-lhe porém carácter de monopólio, já que só ele, assim reconhecido, pode representar respectivamente operários e patrões, só ele concluir contractos e pactos de trabalho. A inscrição no sindicato é facultativa, e só neste sentido se pode dizer, que a organização sindical é livre; pois a quota sindical e certas taxas especiais são obrigatórias para todos os que pertencem a uma dada categoria, sejam eles operários ou patrões; como obrigatórios para todos são também os contratos de trabalho estipulados pelo sindicato jurídico. Verdade é que nas regiões oficiais se declarou, que o sindicato jurídico não exclui a existência de facto de associações profissionais.
As corporações são constituídas pelos representantes dos sindicatos dos operários e dos patrões pertencentes à mesma arte e profissão, e, como verdadeiros e próprios órgãos e instituições do Estado, dirigem e coordenam os sindicatos nas coisas de interesse comum. É proibida a greve; se as partes não podem chegar a um acordo, intervém a autoridade.
Basta reflectir um pouco, para ver as vantagens desta organização, embora apenas sumariamente indicada : a pacífica colaboração das classes, a repressão das organizações e violências socialistas, a acção moderadora de uma magistratura especial. Para não omitir nada em matéria de tanta importância, e em harmonia com os princípios gerais acima recordados e com o que em breve acrescentaremos, devemos contudo dizer, que não falta quem receie, que o Estado se substitua às livres actividades, em vez de se limitar à necessária e suficiente assistência e auxílio; que a nova organização sindical e corporativa tem carácter excessivamente burocrático e político; e que, não obstante as vantagens gerais acenadas, pode servir a particulares intentos políticos mais que à preparação e início de uma ordem social melhor.
Nós cremos, que para conseguir este outro intento nobilíssimo, com benefício geral verdadeiro e duradoiro, é necessária antes de tudo e sobre tudo a bênção de Deus e depois a colaboração de todas as boas vontades. Cremos também e por necessária consequência, que o mesmo intento se conseguirá tanto mais seguramente, quanto maior for a contribuição das competências técnicas., profissionais e sociais, e mais ainda da doutrina e prática dos princípios católicos por parte, não da Acção Católica (que não pretende desenvolver actividade meramente sindical ou política), mas por parte d’aqueles Nossos filhos a quem a Acção Católica admiravelmente forma naqueles princípios e no seu apostolado sob a guia e magistério da Igreja; da Igreja, que mesmo no terreno supra acenado, como em qualquer outro onde se agitem e regulem questões morais, não pode esquecer ou descurar o mandato de guardar e ensinar, que lhe foi divinamente conferido.
Tudo o que temos ensinado acerca da restauração e aperfeiçoamento da ordem social, de modo nenhum poderá realizar-se sem a reforma dos costumes, como até a mesma história eloquentemente demonstra. De facto houve já uma ordem social que, apesar de imperfeita e incompleta, era, de algum modo, dadas as circunstâncias e exigências do tempo, conforme à recta razão. E se essa ordem já de há muito se extinguiu, não foi de certo por ser incapaz de evolucionar e alargar-se com as novas condições sociais; mas porque os homens, ou obcecados pelo amor próprio se recusaram a abrir como convinha, o seio das suas organizações à multidão sempre crescente, que desejava entrar nelas, ou porque iludidos pela aparência de uma falsa liberdade e por outros erros, rebeldes a toda a sujeição, trabalharam por sacudir o jugo de qualquer autoridade.
Só Nos resta por conseguinte citar de novo a juízo o vigente sistema económico, e o seu mais violento acusador, o socialismo, para sobre eles proferirmos uma sentença clara e justa; e ao mesmo tempo, indagada a última raiz de tantos males, apontar o primeiro e mais necessário remédio, que é a reforma dos costumes.
III.
NOTÁVEIS MUDANÇAS DESDE A ENCÍCLICA DE LEÃO XIII
Grandes foram as transformações, que desde os tempos de Leão XIII sofreram tanto a economia, como o socialismo.
1. – EVOLUÇÃO DA ECONOMIA
E primeiramente todos vêem, quão mudada está hoje a situação económica. Sabeis, veneráveis Irmãos e amados Filhos, que o Nosso Predecessor de feliz memória na sua encíclica se referia principalmente àquele sistema, em que ordinariamente uns contribuem com o capital, os outros com o trabalho para o comum exercício da economia, qual ele próprio a definiu na frase lapidar : « Nada vale o capital sem o trabalho, nem o trabalho sem o capital ». (53)
Foi esta espécie de economia, que Leão XIII procurou com todas as veras regular segundo as normas da justiça; donde se segue que de per si não é condenável. E realmente de sua natureza não é viciosa : só então viola a recta ordem, quando o capital escraviza aos operários ou à classe proletária com o fim e condição de que os negócios e todo o andamento económico estejam nas suas mãos e revertam em sua vantagem, desprezando a dignidade humana dos operários, a função social da economia e a própria justiça social e o bem comum.
Verdade é que mesmo hoje não é esta a única forma de economia, que reina por toda a parte; há outra forma, que ainda abraça uma numerosa e importante fracção da humanidade, como é por exemplo a classe agrícola, na qual a maior parte do género humano ganha honradamente a sua vida. Também esta se vê a braços com estreitezas e dificuldades, às quais alude Nosso Predecessor em muitos passos da sua encíclica e Nós nesta Nossa já mais de uma vez Nos referimos.
Mas o regime capitalista da economia, desde a publicação da « Rerum novarum », com o propagar-se da indústria alastrou em todas as direcções, de tal maneira que se infiltrou e invadiu completamente todos os outros campos da produção, cujas condições sociais e económicas afecta realmente e informa com suas vantagens, desvantagens e vícios.
Por consequência não é só o bem dos habitantes das regiões industriais, mas o de todos os homens, que Nós procuramos, ao dirigirmos a Nossa atenção principalmente para as mudanças, que sofreu a economia capitalista desde os tempos de Leão XIII.
Despotismo económico
É coisa manifesta, como nos nossos tempos não só se amontoam riquezas, mas acumula-se um poder imenso e um verdadeiro despotismo económico nas mãos de poucos, que as mais das vezes não são senhores, mas simples depositários e administradores de capitais alheios, com que negoceiam a seu talante. Este despotismo torna-se intolerável naqueles que, tendo nas suas mãos o dinheiro, são também senhores absolutos do crédito e por isso dispõem do sangue de que vive toda a economia, e manipulam de tal maneira a alma da mesma, que não pode respirar sem sua licença. Este acumular de poderio e recursos, nota característica da economia actual, é consequência lógica da concorrência desenfreada, à qual só podem sobreviver os mais fortes, isto é, ordinariamente os mais violentos competidores e que menos sofrem de escrúpulos de consciência. Por outra parte este mesmo acumular de poderio gera três espécies de luta pelo predomínio : primeiro luta-se por alcançar o predomínio económico; depois combate-se renhidamente por obter predomínio no governo da nação, a fim de poder abusar do seu nome, forças e autoridade nas lutas económicas; enfim lutam os Estados entre si, empregando cada um deles a força e influência política para promover as vantagens económicas dos seus cidadãos, ou ao contrário empregando as forças e predomínio económico para resolver as questões políticas, que surgem entre as nações.
Funestas consequências
As últimas consequências deste espírito individualista no campo económico são essas que vós, veneráveis Irmãos e amados Filhos, vedes e lamentais : a livre concorrência matou-se a si própria; à liberdade do mercado sucedeu o predomínio económico; à avidez do lucro seguiu-se a desenfreada ambição de predomínio; toda a economia se tornou horrendamente dura, cruel, atroz. Acrescem os danos gravíssimos originados da malfadada confusão dos empregos e atribuições da pública autoridade e da economia, quais são : primeiro e um dos mais funestos, o aviltamento da majestade do Estado, a qual do trono onde livre de partidarismos e atenta só ao bem comum e à justiça, se sentava como rainha e árbitra suprema dos negócios públicos, se vê feita escrava, entregue e acorrentada ao capricho de paixões desenfreadas; depois, no campo das relações internacionais, dois rios brotados da mesma fonte : de um lado o Nacionalismo ou Imperialismo económico, do outro o Internacionalismo ou Imperialismo internacional bancário, não menos funesto e execrável, cuja pátria é o interesse.
Remédios
Na parte doutrinal desta encíclica indicámos já os remédios, com que se pode combater um mal tão profundo. Agora basta recordar a substância do Nosso ensinamento. Visto como o regime económico moderno se baseia principalmente no capital e no trabalho, é preciso que as normas da recta razão ou da filosofia social cristã, relativas a estes dois elementos e à sua colaboração, sejam melhor conhecidas e postas em prática. Para, evitar o escolho quer do individualismo quer do socialismo, ter-se-á em conta o duplo carácter individual e social tanto do capital ou propriedade, como do trabalho. As relações mútuas de um com o outro devem ser reguladas segundo as leis de uma rigorosa justiça comutativa, apoiada na caridade cristã. A livre concorrência contida dentro de justos e razoáveis limites e mais ainda o poderio económico devem estar efectivamente sujeitos à autoridade pública, em tudo o que é da sua alçada. Enfim as públicas instituições adaptarão a sociedade inteira às exigências do bem comum, isto é, às regras da justiça; donde necessariamente resultará, que esta função tão importante da vida social, qual é a actividade económica, se encontrará por sua vez reconduzida a uma ordem sã e bem equilibrada.
2. – EVOLUÇÃO DO SOCIALISMO
Não menos profunda que a da economia, foi desde o tempo de Leão XIII a evolução do socialismo, contra o qual principalmente terçou armas o Nosso Predecessor. Então podia ele dizer-se único, defendia uma doutrina bem definida e reduzida a sistema; depois dividiu-se em duas facções principais, de tendências pela maior parte contrárias, e irreconciliáveis entre si, conservando porém ambas o princípio fundamental do socialismo primitivo, contrário à fé cristã.
O partido da violência ou comunismo
Uma das facções seguiu uma evolução paralela à da economia capitalista, que antes descrevemos, e precipitou no comunismo, que ensina duas coisas e as procura realizar, não oculta ou solapadamente, mas à luz do dia, francamente e por todos os meios ainda os mais violentos : guerra de classes sem tréguas nem quartel e completa destruição da propriedade particular. Na prossecução destes objectivos a tudo se atreve, nada respeita; uma vez no poder, é incrível e espantoso quão bárbaro e desumano se monstra. Aí estão a atestá-lo as mortandades e ruínas de que alastrou vastíssimas regiões da Europa oriental e da Ásia; e então o ódio declarado contra a santa Igreja e contra o mesmo Deus demasiado o provam essas monstruosidades sacrílegas bem conhecidas de todo o mundo. Por isso, se bem julgamos supérfluo chamar a atenção dos filhos obedientes da Igreja para a impiedade e iniquidade do comunismo, contudo não é sem uma dor profunda, que vemos a apatia dos que parecem desprezar perigos tão iminentes, e com desleixo pasmoso deixam propagar por toda a parte doutrinas, que porão a sociedade a ferro e fogo. Sobretudo digna de censura é a inércia daqueles, que não tratam de suprimir ou mudar um estado de coisas, que, exasperando os ânimos, abre caminho à subversão e ruína completa da sociedade.
O socialismo propriamente dito, ou mitigado
Mais moderada é a outra facção, que conservou o nome de socialismo : porque não só professa abster-se da violência, mas abranda e limita de algum modo, embora não as suprima de todo, a luta de classes e a extinção da propriedade particular. Dir-se-ia que o socialismo, aterrado com as consequências que o comunismo deduziu de seus próprios princípios, tende para as verdades que a tradição cristã sempre solenemente ensinou, e delas em certa maneira se aproxima; por quanto é inegável que as suas revindicações concordam às vezes muitíssimo com as reclamações dos católicos que trabalham na reforma social.
Com efeito a luta de classes, quando livre de inimizades e ódio mútuo, transforma-se pouco a pouco numa concorrência honesta, fundada no amor da justiça, que se bem não é aquela bem-aventurada paz social, por que todos suspiramos, pode e deve ser o princípio da mútua colaboração. Do mesmo modo a guerra à propriedade particular, afrouxando pouco a pouco, chega a limitar-se a ponto de já não agredir a posse do necessário à produção dos bens, mas aquele despotismo social, que a propriedade contra todo o direito se arrogou. E de facto um tal poder não pertence aos simples proprietários mas à autoridade pública. Por este caminho podem os princípios deste socialismo mitigado vir pouco a pouco a coincidir com os votos e reclamações dos que procuram reformar a sociedade segundo os princípios cristãos. Estes com razão pretendem que certos géneros de bens sejam reservados ao Estado, quando o poderio que trazem consigo é tal, que, sem perigo do mesmo Estado, não pode deixar-se em mãos dos particulares.
Tão justos desejos e revindicações em nada se opõem à verdade cristã, e muito menos são exclusivos do socialismo. Por isso quem só por eles luta, não tem razão para declarar-se socialista.
Mas não se vá julgar que os partidos socialistas, não filiados ainda no comunismo, professam já todos teórica e praticamente esta moderação. Em geral não renegam a luta de classes nem a abolição da propriedade, apenas a mitigam. Ora se os falsos princípios assim se mitigam e obliteram, pergunta-se, ou melhor perguntam alguns sem razão, se não será bem que também os princípios católicos se mitiguem e moderem, para sair ao encontro do socialismo e congraçar-se com ele a meio caminho? Não falta quem se deixe levar da esperança de atrair por este modo os socialistas. Esperança vã! Quem quer ser apóstolo entre os socialistas, é preciso que professe franca e lealmente toda a verdade cristã, e que de nenhum modo feche os olhos ao erro. Esforcem-se antes, se querem ser verdadeiros arautos do Evangelho, por mostrar aos socialistas, que as suas reclamações, na parte que tem de justas, se defendem muito mais vigorosamente com os princípios da fé e se promovem muito mais eficazmente com as forças da caridade.
Contrasta com a doutrina católica
E se o socialismo estiver realmente tão moderado no tocante à luta de classes e à propriedade particular, que já não mereça nisto a mínima censura? Terá renunciado por isso à sua natureza essencialmente anticristã? Eis uma dúvida, que a muitos traz suspensos. Muitíssimos católicos convencidos de que os princípios cristãos não podem jamais abandonar-se nem obliterar-se, volvem os olhos para esta Santa Sé e suplicam instantemente, que definamos se este socialismo repudiou de tal maneira as suas falsas doutrinas, que já se possa abraçar e quase baptizar, sem prejuízo de nenhum princípio cristão. Para lhes respondermos, como pede a Nossa paterna solicitude, declaramos : O socialismo quer se considere como doutrina, quer como facto histórico, ou como « acção », se é verdadeiro socialismo, mesmo depois de se aproximar da verdade e da justiça nos pontos sobreditos, não pode conciliar-se com a doutrina católica; pois concebe a sociedade de modo completamente avesso à verdade cristã.
Com efeito : segundo a doutrina cristã o homem sociável por natureza é colocado nesta terra, para que, vivendo em sociedade e sob a autoridade ordenada por Deus, 54 cultive e desenvolva plenamente todas as suas faculdades, para louvor e glória do Criador, e pelo fiel cumprimento dos deveres da sua profissão ou vocação, qualquer que ela seja, grangeie a felicidade temporal e eterna. Ora o socialismo, ignorando por completo ou desprezando este fim sublime dos indivíduos e da sociedade, opina que o consórcio humano foi instituído só pela vantagem material que oferece. E na verdade do facto que o trabalho convenientemente organizado é muito mais produtivo que os esforços isolados, os socialistas concluem, que a actividade económica deve necessariamente revestir uma forma social. Desta necessidade segue-se, segundo eles, que os homens por amor da produção são obrigados a entregar-se e sujeitar-se completamente à sociedade. Mais : estimam tanto os bens materiais, que servem à comodidade da vida, que afirmam deverem pospor-se e mesmo sacrificar-se quaisquer outros bens superiores e em particular a liberdade às exigências de uma produção activíssima. Esta perda da dignidade humana, inevitável no sistema da produção « socializada », julgam-na bem compensada com a abundância dos bens que, produzidos socialmente, serão distribuídos pelos indivíduos, e estes poderão livremente aplicar a uma vida mais cómoda e faustosa. Em consequência a sociedade sonhada pelo socialismo não pode existir nem conceber-se sem violências manifestas; por outra parte goza de uma liberdade não menos falsa, pois carece de verdadeira autoridade social; esta não pode fundar-se nos cómodos materiais, mas provém somente de Deus Criador e fim último de todas as coisas. (55)
Católicos e socialistas termos contraditórios
E se este erro, como todos os mais, encerra algo de verdade, o que os Sumos Pontífices nunca negaram, funda-se contudo numa própria concepção da sociedade humana, diametralmente oposta à verdadeira doutrina católica. Socialismo religioso, socialismo católico são termos contraditórios : ninguém pode ser ao mesmo tempo bom católico e verdadeiro socialista.
Socialismo educador
Estas doutrinas que Nós de novo com a Nossa suprema autoridade solenemente declaramos e confirmamos, devem aplicar-se também a um novo sistema de socialismo prático, ainda mal conhecido, mas que se vai propagando nos meios socialistas. Propõe-se ele a formação das inteligências e dos costumes; e ainda que se faz particular amigo da infância e procura aliciá-la, abraça todas as idades e condições, para formar o homem « socialista » que há de constituir mais tarde a sociedade humana plasmada pelo ideal do socialismo.
Na Nossa encíclica « Divini illius Magistri » ensinámos desenvolvidamente os princípios, em que se funda, os fins, a que se dirige a pedagogia cristã. (56) Quão contrários lhes sejam a teoria e a prática do socialismo educador, é tão claro e evidente, que é inútil insistir. Parecem porém ignorar ou não ter na devida conta os gravíssimos e funestos perigos deste socialismo, os que não tratam de lhe resistir forte e energicamente, como o pede a gravidade das circunstâncias. É dever do Nosso múnus pastoral chamar-lhes a atenção para a gravidade e eminência do perigo : lembrem-se todos, que deste socialismo educador foi pai o liberalismo, será herdeiro legítimo o bolchevismo.
Católicos desertores nos arraiais socialistas
Pôsto isto, compreendeis facilmente, veneráveis Irmãos, com quanta dor vemos em algumas regiões não poucos dos Nossos filhos, de cuja fé e boa vontade não queremos duvidar, desertar dos arraiais da Igreja e passar às fileiras do socialismo; uns ostentando abertamente o nome e professando as doutrinas socialistas, outros indiferentes ou talvez forçados entrando em associações, que teórica ou praticamente professam o socialismo.
Ora Nós com paterna solicitude ansiosamente vamos considerando e indagando como foi possível, que chegassem a tal aberração; e parece-Nos ouvir a resposta, com que muitos se escusam : a Igreja e todos os que se lhe proclamam obedientes, favorecem os ricos, desprezam os operários, nem têm deles o mínimo cuidado; por isso é que se viram na necessidade de se inscrever no socialismo para salvaguardar os próprios interesses.
É muito para lamentar, veneráveis Irmãos, que houvesse um tempo e haja ainda quem, dizendo-se católico, apenas se lembra da sublime lei da justiça, e caridade, que nos obriga não só a dar a cada um o que lhe pertence, mas também a socorrer os pobres, nossos irmãos, como ao próprio Jesus Cristo; (57) quem não teme oprimir os operários por cobiça de sórdido lucro e, o que é mais grave, quem abusa da mesma religião para paliar as suas iníquas extorsões e defender-se contra as justíssimas reclamações dos operários. Por Nossa parte não deixaremos nunca de censurar severamente um tal proceder; são eles os culpados de a Igreja se ver injustamente (mas com certa aparência de verdade) acusada de patrocinar a causa dos ricos, e de não se compadecer das necessidades e angústias dos pobres, defraudados da sua parte de bem-estar nesta vida. Aparências infundadas e acusações caluniosas, como demonstra toda a história da Igreja. Bastava a encíclica, cujo quadragésimo aniversário celebramos, para provar exuberante mente, que, só com a maior das injustiças, se podem assacar à Igreja tais calúnias e contumélias.
Oxalá voltem à casa paterna
Porém nem a injúria Nos ofende, nem a magna desalenta o Nosso coração paterno a ponto de repelirmos para longe de Nós estes filhos tristemente enganados e saídos do caminho da verdade e da salvação; ao contrário com toda a possível solicitude os convidamos, a que voltem ao seio da Santa Madre Igreja. Oxalá que dêem ouvidos à Nossa voz! Oxalá que voltem à casa paterna donde saíram e aí permaneçam no seu posto, nas fileiras daqueles que, fieis às directivas promulgadas por Leão XIII e por Nós hoje solenemente renovadas, procuram reformar a sociedade segundo o espírito da Igreja, fazendo reflorescer a justiça e a caridade sociais. E persuadam-se que em parte nenhuma podem encontrar maior felicidade, até mesmo temporal, que junto d’Aquele que por nós se fez pobre sendo rico, para nos enriquecer com a sua pobreza, (58) que viveu pobre e em trabalhos desde a sua juventude, que chama a si todos os que trabalham e se vêem oprimidos, para os aliviar na caridade do seu Coração, (59) que finalmente sem aceitação de pessoas exigirá mais d’aqueles a quem foi dado mais (60) e retribuirá a cada um segundo as suas obras. (61)
3. – REFORMA DOS COSTUMES
Mas se examinarmos as coisas mais a fundo, veremos à evidência, que esta restauração social tão ardentemente desejada, não se pode obter sem prévia e completa renovação do espírito cristão, do qual miseravelmente desertaram tantos economistas; porque sem ela seriam inúteis todos os esforços e fabricariam não sobre a rocha, mas sobre a areia movediça. (62)
E realmente, veneráveis Irmãos e amados Filhos, acabamos de estudar a economia actual, e achámo-la profundamente viciada. Citámos novamente a juízo o comunismo e o socialismo, e vimos quanto as suas formas ainda as mais mitigadas, se desviam dos ditames do Evangelho.
« Portanto, para usar das palavras do Nosso Predecessor, se pode curar-se a sociedade humana, só se curará voltando à vida e instituições cristãs ». (63) Só estas podem dar remédio eficaz à demasiada solicitude das coisas caducas origem de todos os vícios ; só estas podem fazer, que os homens, fascinados pelos bens deste mundo transitório, desviem deles os olhos e os levantem ao céu. Quem dirá, que este remédio não é hoje, mais que nunca, necessário à família humana?
A ruína das almas
Todos se preocupam quase unicamente com as revoluções, calamidades e ruínas temporais. Mas, se vemos as coisas à luz da fé, que é tudo isto em comparação da ruína das almas? Bem pode dizer-se, que tais são hoje as condições da vida social e económica, que se torna muito difícil a uma grande multidão de homens ganharem o único necessário, a salvação eterna.
Nós, a quem o Príncipe dos Pastores constituiu Pastor e Guarda destas inumeráveis ovelhas, remidas com o seu sangue, não podemos contemplar a olhos enxutos o gravíssimo perigo, que elas correm. Senão que, lembrados do Nosso dever pastoral, com solicitude paterna, meditamos continuamente no modo de as ajudar, chamando em auxílio o zelo indefesso dos que a isso estão obrigados por justiça ou caridade. Pois que aproveita aos homens poderem mais facilmente lucrar o mundo inteiro com uma distribuição e uso mais racional das riquezas, se com isso mesmo vem a perder a alma? (64) Que aproveita ensinar-lhes os princípios da boa economia, se com avareza sórdida e desenfreada se deixam arrebatar de tal maneira do amor dos próprios bens, que « ouvindo os mandamentos do Senhor, fazem tudo o contrário »? (65)
Causa desta ruína
A raiz e fonte desta defecção da lei cristã na vida social e económica, e da consequente apostasia da fé católica para muitos operários é a desordem das paixões, triste efeito do pecado original; foi ele que destruiu a admirável harmonia das faculdades humanas e dispõe o homem a deixar-se facilmente arrastar das más paixões e a preferir os bens caducos da terra aos eternos do céu. D’aqui aquela sede inextinguível de riquezas e bens temporais, que, se em todos os tempos arrastou os homens a quebrar a lei de Deus e conculcar os direitos do próximo, nas actuais condições económicas arma à fragilidade humana laços ainda mais numerosos. Com efeito a incerteza da economia e mais ainda a sua complicação exigem dos que a ela se aplicam, uma contenção de forças suma e contínua; em consequência algumas consciências calejaram de tal maneira, que julgam lícitos todos os meios de aumentar os lucros e defender contra os vaivens da fortuna a riqueza adquirida à custa de tantos esforços e cancerais. A facilidade dos lucros, que oferece a anarquia do mercado, leva muitos a darem-se ao comércio desejosos unicamente de enriquecer sem grande trabalho; os quais, com desenfreada especulação, levantam e diminuem os preços a capricho da própria cobiça e com tal frequência, que desconcertam todos os cálculos dos produtores. As instituições jurídicas destinadas a favorecer a colaboração dos capitais, por isso que dividem e diminuem os riscos, dão lugar muitas vezes aos mais repreensíveis excessos; com efeito vemos a responsabilidade tão atenuada, que já a poucos impressiona; sob a tutela de um nome colectivo praticam-se as maiores injustiças e fraudes; os gerentes destas sociedades económicas, esquecidos dos seus deveres, atraiçoam os direitos daqueles, cujas economias deviam administrar. Nem se devem finalmente deixar em silêncio os traficantes que, sem olharem à honestidade das suas artes, não temem estimular os caprichos da clientela para deles abusarem em própria vantagem.
Somente uma rígida disciplina dos costumes, energicamente apoiada pela autoridade pública, poderia ter afastado ou mesmo prevenido tão graves inconvenientes; mas infelizmente essa faltou. Quando começou a aparecer o novo regime económico, tinha o nacionalismo penetrado e lançado raízes em muitas inteligências; por isso e ciência económica, que então se formou, prescindindo da lei moral, soltava as rédeas às paixões humanas.
E assim sucedeu, que mais do que antes, muitíssimos não pensavam senão em aumentar por todos os modos as suas riquezas; e procurando-se a si mais que tudo e acima de todos, de nada tinham escrúpulo, nem sequer dos maiores delitos contra o próximo. Os primeiros a entrar por este caminho largo que leva à perdição, (66) grangearam por sua vez e facilmente muitos imitadores da sua maldade, já pelo exemplo de um êxito aparente, já pela insolente pompa das suas riquezas, ora metendo a ridículo a consciência dos outros, como se estivesse agitada de vãos escrúpulos, ora finalmente conculcando os competidores mais conscienciosos.
Desviados do bom caminho os dirigentes da economia, devia logicamente precipitar-se no mesmo abismo a multidão operária; e isto tanto mais, que muitos directores de oficinas usavam dos operários como de meros instrumentos, em nada solícitos da sua alma, não pensando sequer no sobrenatural. Sentimo-Nos horrorizados ao pensar nos gravíssimos perigos a que estão expostos nas fábricas modernas os costumes dos operários (sobre tudo jovens) e o pudor das mulheres e donzelas; ao lembrarmo-Nos de que muitas vezes o sistema económico hodierno e sobre tudo as más condições da habitação criam obstáculos à união e intimidade da vida de família; ao recordarmos os muitos e grandes impedimentos opostos à devida santificação dos domingos e festas de guarda; ao considerarmos enfim como diminuiu aquele sentimento verdadeiramente cristão, com que até os rudes e ignorantes aspiravam aos bens superiores, para dar lugar à solicitude única de procurar tão somente e por todos os meios o pão quotidiano. Deste modo o trabalho corporal, ordenado pela divina Providência, depois da. culpa de origem, para remédio do corpo e da alma, converte-se frequentemente em instrumento de perversão : da oficina só a matéria sai enobrecida, os homens ao contrário corrompem-se e aviltam-se.
REMÉDIOS
A) Cristianização da vida económica
A esta tão deplorável crise das almas, que, enquanto dure, tornará inúteis todos os esforços de regeneração social, não pode dar-se outro remédio, mais que reconduzir os homens à profissão franca e sincera da doutrina evangélica, aos ensinamentos d’Aquele, que tem ele só palavras de vida eterna, (67) e palavras tais, que hão de perdurar eternamente, ainda depois de passarem os céus e a terra. (68) É certo que todos os verdadeiramente entendidos em sociologia, anseiam por uma reforma moldada pelas normas da razão, que restitua a vida económica à sã e recta ordem. Mas esta ordem, que também Nós ardentemente desejamos, e procuramos com o maior empenho, será de todo falha e imperfeita, se não tenderem de concerto todas as energias humanas a Imitar a admirável unidade do divino conselho e a consegui-la, quanto ao homem é dado : chamamos perfeita aquela ordem apregoada pela Igreja com grande força e tenacidade, pedida mesmo pela razão humana, isto é : que tudo se encaminhe para Deus fim primário e supremo de toda a actividade criada, e que todos os bens criados por Deus se considerem como instrumentos dos quais o homem deve usar tanto, quanto lhe sirvam a conseguir o último fim. Nem deve julgar-se que esta filosofia rebaixa as artes lucrativas ou as considera menos conformes à dignidade humana; pelo contrário ensina a reconhecer e venerar nelas a vontade manifesta do divino Criador, que colocou o homem sobre a terra para a cultivar e usar dela segundo as suas múltiplas precisões. Nem é vedado aos que se empregam na produção, aumentar justa e devidamente a sua fortuna; antes a Igreja ensina ser justo que quem serve a sociedade e lhe aumenta os bens, se enriqueça também desses mesmos bens conforme a sua condição, contanto que isto se faça com o respeito devido à lei de Deus e salvos os direitos do próximo, e os bens se empreguem segundo os princípios da fé e da recta razão. Se esta doutrina fosse por todos, em toda a parte e sempre observada, não somente a produção e aquisição dos bens, mas também o uso das riquezas, agora tantas vezes desordenado, voltaria depressa aos limites da equidade e justa distribuição; à única e tão sórdida preocupação dos próprios interesses, que é a desonra e o grande pecado do nosso tempo, opõr-se-ia na verdade e de facto a suavíssima e igualmente poderosa lei da moderação cristã, que manda ao homem buscar primeiro o reino de Deus e a sua justiça, seguro de que também na medida do necessário a liberalidade divina, fiel às suas promessas, lhe dará por acréscimo os bens temporais. (69)
B) A lei da caridade
Mas isto só não basta : à lei da justiça deve juntar-se a da caridade, « que é o vínculo da perfeição ». (70) Quanto se enganam por tanto os reformadores incautos, que atendendo somente a guardar a justiça comutativa, rejeitam com orgulho o concurso da caridade! De certo não pode a caridade substituir a justiça, quando o devido se nega iniquinamente. Contudo ainda que o homem alcance enfim quanto lhe é devido, restará sempre um campo imenso aberto à caridade : a justiça, bem que praticada com todo o rigor, se pode extirpar as raízes das lutas sociais, não poderá nunca sozinha congraçar os ânimos e unir os corações. Ora todas as instituições criadas para consolidar a paz e promover a colaboração social, por mais perfeitas que pareçam, tem o fundamento da sua estabilidade principalmente no vínculo que une as almas; se este falta, tornam-se ineficazes os melhores estatutos, como tantas vezes a experiência no-lo ensinou. Por isso só haverá uma verdadeira cooperação de todos para o bem comum, quando as diversas partes da sociedade sentirem intimamente, que são membros de uma só e grande família, filhos do mesmos Pai celeste, antes um só corpo em Cristo e « membros uns dos outros », (71) de modo que « se um membro sofre, todos os membros sofrem com ele ». (72) Então os ricos e senhores converterão em amor solícito e operoso o antigo desprezo pelos irmãos mais pobres; acolherão os seus justos pedidos com bom rosto e coração aberto, perdoar-lhes-ão até sinceramente as culpas e os erros. Por sua vez os operários, reprimindo qualquer sentimento de ódio e inveja, de que abusam com tanta astúcia os fautores da luta de classes, não desdenharão o posto que a divina Providência lhes assinou na sociedade humana, antes o terão em grande apreço, bem persuadidos de que no seu emprego e ofício trabalham útil e honrosamente para o bem comum, e seguem mais de perto Aquele que, sendo Deus, quis na terra fazer-se operário e ser considerado como filho de operário.
É desta nova difusão do espírito evangélico no mundo, do espírito de moderação cristã e de caridade universal, que há de brotar, como esperamos, aquela tão desejada e completa restauração da sociedade humana em Cristo, e aquela « Paz de Cristo no reino de Cristo », a que desde o início do nosso Pontificado firmemente propusemos consagrai todo o Nosso cuidado e solicitude pastoral. (73) A esta obra primordial e hoje absolutamente necessária, também vós, veneráveis Irmãos, posto. pelo Espírito Santo a governar comNosco a Igreja de Deus (74) consagrais incansavelmente o melhor do vosso zelo em todas as partes do mundo, inclusivamente nas terras de missões entre infiéis. A vós o merecido louvor e comvosco a todos esses valorosos colaboradores na mesma grande empresa, clérigos ou leigos, aos Nossos amados Filhos da Acção Católica, que Nós com tanto prazer vemos dedicarem-se generosamente comNosco à solução dos problemas sociais, na persuasão de que a Igreja por força da sua divina instituição tem o direito e o dever de se ocupar d’eles. A todos estes instantemente exortamos no Senhor, que não se poupem a nenhum trabalho, não se deixem vencer das dificuldades, mas cada vez cobrem maior ânimo e sejam fortes. (75) É árdua efectivamente a empresa que lhes propomos : conhecemos muito bem, que de ambas as partes surgem inúmeros obstáculos, quer das classes superiores, quer das inferiores da sociedade. Não desanimem porém; a vida do cristão é uma contínua milícia; mas assinalar-se em empresas difíceis é próprio dos que, como bons soldados, (76) mais de perto seguem a Cristo.
Portanto unicamente confiados no auxílio omnipotente d’Aquele que « a todos os homens quer salvar », (77) esforcemo-nos em ajudar estas pobres almas, afastadas de Deus, e arrancando-as aos cuidados temporais, em que vivem enredadas, ensinemos-lhes a aspirar confiadamente às coisas eternas. Nem isto é sempre tão difícil de obter, como à primeira vista parece : se nos recônditos do coração, ainda o mais perdido, como brasas debaixo da cinza, se ocultam maravilhosas energias de espírito, testemunho seguro d’aquela « alma naturalmente cristã », quanto mais as haverá nos corações d’aqueles, e são a maior parte, que mais por ignorância ou por influências externas, do que por malícia, se deixaram arrastar para o erro?
Além disto apresentam-nos já sinais lisonjeiros de restauração social as mesmas fileiras dos operários, nas quais vemos com indizível gozo da alma poderosos núcleos de jovens, que escutam com docilidade as inspirações da graça divina e se empenham com zelo incrível em ganhar a Cristo a alma de seus irmãos. E não são menos dignos de elogio os dirigentes das organizações operárias que, esquecidos dos seus interesses e solícitos sobre tudo do bem dos companheiros, procuram harmonizar prudentemente as suas justas reclamações com a prosperidade de toda a indústria, nem por nenhumas dificuldades ou suspeitas se deixam demover de tão nobre procedimento. Podem ver-se até muitos jovens destinados a ocupar brevemente ou pelo engenho ou pelas riquezas um posto de realce nas primeiras camadas da sociedade, que se consagram com o mais intenso cuidado a estas questões, dando risonha esperança de virem a dedicar-se todos à restauração social.
Caminho a seguir
As circunstâncias, veneráveis Irmãos, mostram bem qual a via a trilhar. Como noutras épocas da Igreja, temos de defrontar-nos com um mundo quase recaído no paganismo. Para reconduzir a Cristo, a quem renegaram, essas classes inteiras de homens, devem escolher-se e formar-se de entre elas soldados auxiliares da Igreja, que conheçam bem os mesmos homens, os seus pensamentos e aspirações, e possam pela caridade fraterna penetrar-lhes suavemente no coração. Os primeiros e imediatos apóstolos dos operários devem ser operários; os apóstolos dos artistas e comerciantes devem sair dentre eles.
Procurar cuidadosamente estes apóstolos dos operários e patrões, escolhê-los com prudência, formá-los e educá-los como convém, é principalíssimo dever vosso e do vosso clero, veneráveis Irmãos. É de certo um pesado múnus imposto aos sacerdotes, para cujo desempenho devem preparar-se devidamente com aturado estudo das questões sociais os levitas que formam a esperança da Igreja; mas é sobre tudo necessário que os escolhidos em particular para este ofício sejam dotados de um tão apurado sentimento de justiça, que resistam varonilmente a qualquer reclamação iníqua ou acção injusta; se avantagem na prudência e numa discrição não inclinada a extremos; que estejam mais que tudo penetrados da caridade de Cristo, que só pode render forte e suavemente os corações e as vontades dos homens às leis da justiça e da equidade. Não há duvida que este caminho, abonado já por felizes resultados, é o que se deve seguir denodadamente.
A esses Nossos amados filhos, escolhidos para tão grande empresa, exoramos vivamente no Senhor, que se dêem todos ao cultivo dos homens a si confiados, e que no desempenho desse ofício eminentemente sacerdotal e apostólico usem como convêm da força da educação cristã, ensinando os jovens, fundando associações católicas, criando círculos, onde se cultive o estudo segundo os princípios da fé. Tenham sobretudo em grande apreço e saibam usar para bem dos seus dirigidos aquele preciosíssimo instrumento de restauração individual e social, que são os Exercícios espirituais por Nós encarecidos na Nossa encíclica « Mens Nostra », na qual lembrámos espressamente e recomendámos os exercícios como utilíssimos para todas as classes do laicado e em particular para os operários : com efeito nesta escola do espírito não só se cultivam ótimos cristãos, mas formam-se e inflamam-se no fogo do Coração de Jesus verdadeiros apóstolos para todos os estados da vida. Desta escola, como os Apóstolos do Cenáculo de Jerusalém, sairão fortes na fé, constantes nas perseguições, ardentes de zelo, unicamente solícitos de propagar por toda a parte o reino de Cristo.
E certamente agora, mais que nunca, são precisos estes valorosos soldados de Cristo, que trabalhem com todas as forças por preservar a família humana da pavorosa catástrofe, em que viria a precipitar-se, se o desprezo das doutrinas do Evangelho deixasse triunfar uma ordem de coisas, que conculca as leis da natureza, não menos que as de Deus. A Igreja de Cristo, alicerçada na rocha inabalável, nada tem que temer por si, pois sabe muito bem, que as portas do inferno não prevalecerão contra ela; (78) e uma experiência de vinte séculos prova-lhe, que das tempestades mais violentas sai cada vez mais forte e coroada de novos triunfos. Mas o seu coração de Mãe estremece de horror ao pensar nos males sem número, em que estas tempestades afogariam milhares de homens e mais ainda nos gravíssimos danos espirituais, que daí resultariam em ruína de tantas almas resgatadas com o sangue de Cristo.
Devem pois envidar-se todos os esforços para desviar da sociedade humana males tão grandes : a isto devem endereçar-se os nossos trabalhos, a nossa solicitude, as nossas orações a Deus, assíduas e fervorosas. Com o socorro da graça divina temos em nossas mãos a sorte da família humana.
Não consintamos, veneráveis Irmãos e amados Filhos, que os filhos deste século se mostrem na sua geração mais prudentes do que nós, que somos, por mercê divina, filhos da luz. (79) Vemos com quanta sagacidade eles escolhem adeptos militantes e os formam, para que espalhem os seus erros cada vez mais largamente, em todas as classes e sobre todos os pontos do globo. E quando se trata de combater mais violentamente a Igreja de Cristo, vemos que, dando tréguas às discórdias intestinas, cerram fileiras num só exército, e unidos trabalham com todas as forças por levar a efeito o comum intento.
União das forças católicas
Ninguém ignora quantas e quão grandes obras empreenda por toda a parte o zelo infatigável dos católicos, tanto no campo social e económico, como no do ensino e da religião. Não raro porém esta actividade admirável e laboriosa se torna menos eficaz devido à demasiada dispersão de forças. Unam-se pois todos os homens de boa vontade, que sob a direcção dos Pastores da Igreja querem combater este bom e pacífico combate de Cristo; e todos, seguindo as directivas e ensinamentos da Igreja, se esforcem por contribuir na medida do seu engenho, forças e condição para aquele renovamento cristão da sociedade, que Leão XIII inaugurou com a imortal encíclica « Rerum novarum » : não se procurando a si mesmos nem os seus próprios interesses, mas os de Jesus Cristo; (80) não teimando em fazer triunfar as suas ideias, por boas que sejam, mas dispostos a sacrificá-las ao bem comum; para que em tudo e sobre tudo reine e impere Cristo, a quem seja honra, glória e poder por todos os séculos. (81)
Para que isto se realize, a todos vós, veneráveis Irmãos e amados Filhos, quantos sois membros da grande família católica a Nós confiada, mas com particular afecto aos operários e aos outros trabalhadores de artes mecânicas, a Nós mais especialmente recomendados pela divina Providência, e também aos patrões e empresários cristãos damos de coração a Bênção Apostólica.
Dado em Roma, junto de S. Pedro, aos XV de maio de MCMXXXI, ano X do Nosso Pontificado.
PIO PP. XI.
Notas
(1) Encícl. Arcanum 10 de Fevereiro de 1880.
(2) Encícl. Diuturnum 29 de Junho de 1881.
(3) Encícl. Immortale Dei 1 de Novembro de 1885.
(4) Encícl. Sapientiae christianae 10 de Janeiro de 1890.
(5) Encícl. Quod apostolici muneris 28 de Dezembro de 1878.
(6) Encícl. Libertas 20 de Junho de 1888.
(7) Encícl. Rerum novarum, 15 de Maio de 1891, n. 1.
(8) Cfr. Encícl. Rerum novarum, n. 13.
(9) Encícl. Rerum novarum, n. 2.
(10) Encícl. Rerum novarum, D. 13.
(11) Mt., 7, 29.
(12) Encícl. Rerum novarum, n. 1.
(13) S. Ambrósio, de excessu fratris sui Satyri, I, 44.
(14) Encícl. Rerum novarum, n. 13.
(15) Baste mencionar: Leão XIII, Letras Apostólicas Praeclara 20 de Junho de 1894. Leão XIII Graves de communi 18 de Janeiro de 1901. Pio X Motu proprio sobre a Acção-popular cristã 8 de Dezembro de 1903. Bento XV, Enciclica Ad Beatissimi 1 de Novembro de 1914. Pio XI, Enciclica Ubi arcano 23 de Dezembro de 1922. Pio XI, Enciclica Rite expiatis 30 de Abril de 1926.
(16) Cfr. La Hierarchie Catholique et le Problème social depuis l’Encyclique « Rerum novarum » 1891-1931, pp. XVI-335, publicado pela « Union internationale d’études sociales fondée à Malines, en 1920, sons la présidence du Card. Mercier ». (Paris, éditions Spes », 1931).
(17) Cfr. Is. 11, 12.
(18) Encícl. Rerum novarum, n. 25.
(19) Encícl. Rerum novarum, n. 29.
(20) Encícl. Rerum novarum, n. 36.
(21) Encícl. Rerum novarum, n. 42.
(22) Encícl. Rerum novarum, n. 43.
(23) Encícl. Singulari quadam de 24 de Setembro de 1912.
(24) Carta da S. Congregação do Concilio ao Bispo de Lille, 5 de Junho de 1929.
(25) Cfr. Rom., 1, 14.
(26) Cfr. Rerum novarum, n. 13.
(27) Encícl. Ubi arcano, 23 de Dezembro de 1922.
(28) Cfr. Conc. Vaticano, Sess. 3, c. 4.
(29) Encícl. Ubi arcano, 23 de Dezembro de 1922.
(30) Encícl. Rerum novarum, n. 19.
(31) Cfr. Encícl. Rerum novarum, n. 19.
(32) Encícl. Rerum novarum, n. 7.
(33) Alocução aos membros de Acção Católica italiana, 16 de Maio de 1926.
(34) Encícl. Rerum novarum, n. 6.
(35) Encícl. Rerum novarum, n. 10.
(36) Encícl. Rerum novarum, n.
(37) S. Thomas, S. Th., II, II, q. 97 e 134.
(38) Encícl. Rerum novarum, n. 27.
(39) Encícl. Rerum novarum, n. 15.
(40) Encícl. Rerum novarum, n. 7.
(41) II Thess., 3, 10.
(42) Cfr. II Thess., 3, 8-10.
(43) Encícl. Rerum novarum, n. 35.
(44) Encícl. Rerum novarum, n. 34.
(45) Encícl. Rerum novarum, n. 17.
(46) Cfr. Encícl. Casti connubii, 31 de Dezembro de 1930.
(47) Cfr. S. Thomas, De regimine principum, 1, 15. Encícl. Rerum novarum, n. 27.
(48) Encícl. Rerum novarum, n. 16.
(49) Cfr. S. Thomas, Contra Gentes 3, 71; Summa Theol. I, 9, 65 art. 2 i. c.
(50) Cfr. Encícl. Immortale Dei, 1 de Novembro de 1885.
(51) Encícl. Rerum novarum, n. 42.
(52) Eph., 4, 16.
(53) Encícl. Rerum novarum, n. 15.
(54) Cfr. Rom., 13, 1.
(55) Cfr. Encícl. Diuturnum, 29 de Junho de 1881.
(56) Encícl. Divini illius Magistri, 31 de Dezembro de 1929.
(57) Cfr. Jac., 2.
(58) II Cor., 8, 9.
(59) Mt., 11, 28.
(60) Cfr. Lc., 12, 48.
(61) Mr., 16, 27.
(62) Cfr. Mr, 7, 24 ss.
(63) Encícl. Rerum novarum, n. 22.
(64) Cfr. Mt., 16, 26.
(65) Cfr. Judic., 2, 17.
(66) Cfr. Mt., 7, 13.
(67) Cfr. Joh., 6, 70.
(68) Cfr. Mt., 24, 35.
(69) Mt., 6, 33.
(70) Col., 3, 14..
(71) Rom, 12, 5.
(72) I Cor., 12, 26.
(73) Cfr. Encícl. Ubi arcano, de 23 de Dezembro de 1922.
(74) Cfr. Act., 20, 28.
(75) Cfr. Deut., 31, 7.
(76) Cfr. II Tim., 2, 3.
(77) I Tim., 2, 4.
(78) Mt., 16, 18.
(79) Cfr. Lc., 16, 8.
(80) Cfr. Phil., 2, 21.
(81) Apoc., 5, 13.