Um relatório de 2.000 páginas que revela 330.000 vítimas em 70 anos. É o resultado da Comissão Independente sobre Abuso Sexual na Igreja Francesa. Os números são assustadores e continuam a ser assimilados pela Conferência Episcopal da Gália, que destinou três milhões de euros para esta auditoria. À frente deste trabalho, Jean-Marc Sauvé, vice-presidente do Conselho de Estado da França e presidente do Instituto Francês de Ciências Administrativas.
PERGUNTA.- Qual tem sido sua experiência nos dois anos e meio que durou a investigação?
RESPOSTA.- Este caminho tem sido uma prova intelectual, pessoal e espiritual. Intelectual, porque se tratava de analisar, ao longo de um período muito longo, realidades ocultas que quase não deixaram vestígios. A Comissão tem trabalhado de forma multidisciplinar, com especialistas em diferentes áreas: médicos, psicólogos, juristas, historiadores, sociólogos, teólogos, assistentes sociais … Tudo isso com pessoas de todos os horizontes religiosos, mesmo que fosse para investigar a Igreja Católica. Um grande desafio.
Mas o mais difícil foi o choque quando encontramos as vítimas, descobrimos o que significa seu sofrimento, sua incapacidade de viver, mesmo décadas depois dos acontecimentos. Com base nos mais de 2.800 e-mails que recebemos e nas 243 entrevistas que realizamos, posso dizer que mais da metade das pessoas que sofreram violência sexual estão hoje em uma situação mental ruim ou péssima. Esse tipo de violência atinge as profundezas de uma pessoa. O teste mais doloroso é o das vítimas. Ao dar seu testemunho, eles revivem sua história, seu trauma é reativado.
Falha institucional
P.- O relatório fala de abusos massivos, de natureza “sistêmica”. Que fatores da cultura eclesial o permitiram?
R.- Houve erros criminais e civis em relação aos agressores e, às vezes, por parte de dirigentes eclesiais, mas, de uma forma mais geral, houve uma falha institucional: a Igreja não soube ou não quis ver o que aconteceu, você não tomou as medidas necessárias para evitar abusos. É por isso que podemos dizer que a responsabilidade da Igreja tem um caráter sistêmico. Sem culpa, estamos diante de um fracasso da instituição, com negligência em todos os níveis.
Embora seja verdade que a Igreja só conhecia cerca de 4% dos casos, não foi capaz de detectar outros sinais fracos ou resolver os problemas quando teve oportunidade de o fazer. Durante décadas, os casos de abuso foram resolvidos com o deslocamento dos abusadores. Quando se ouviram boatos sobre padres muito próximos das crianças, nada foi feito. E ainda assim, houve muitas situações que deveriam ter despertado alguma vigilância .
P.- Existem especificidades da violência sexual no âmbito da Igreja?
R.- Os abusos estão presentes em todas as áreas da sociedade, desde que existam idosos em cargos de autoridade ou educação com menores. Mas também existem riscos específicos no ambiente eclesial. Uma doutrina católica desviante – por exemplo, sobre a figura do padre, que é igualado a Cristo ou ao próprio Deus – criou um clima favorável ao abuso.
Isso contribui para a ausência de resistência por parte das vítimas. O abuso na Igreja é mais perverso, porque é cometido acessando a consciência da vítima. E não há nada mais frágil do que a consciência de um menor. Na esfera católica, o abuso sexual muitas vezes é consequência do abuso de consciência, como explica o Papa.
P.- O Direito Canônico também faz parte do problema?
R.- Uma legislação eclesiástica adequada poderia ter permitido uma gestão interna eficiente. É preciso reconhecer que o Direito Canônico não funciona bem. Não existem regras para um processo justo como em qualquer país. A vítima, por exemplo, não tem papel no julgamento. Há também outro problema fundamental: a concentração excessiva de poderes. O bispo é o superior dos sacerdotes da sua diocese, nomeia os juízes, decide o andamento do processo e a aplicação das penas. Nenhum sistema pode funcionar adequadamente nessas condições.
FONTE: VIDA NOVA DIGITAL