HOMILIA – É POSSÍVEL DEIXAR TUDO POR JESUS? – PADRE PAULO RICARDO
HOMILIA – É POSSÍVEL DEIXAR TUDO POR JESUS? – PADRE PAULO RICARDO
Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas
(Lc 14, 25-33)
Naquele tempo, grandes multidões acompanhavam Jesus. Voltando-se, ele lhes disse: “Se alguém vem a mim, mas não se desapega de seu pai e sua mãe, sua mulher e seus filhos, seus irmãos e suas irmãs e até da sua própria vida, não pode ser meu discípulo. Quem não carrega sua cruz e não caminha atrás de mim, não pode ser meu discípulo. Com efeito, qual de vós, querendo construir uma torre, não se senta primeiro e calcula os gastos, para ver se tem o suficiente para terminar? Caso contrário, ele vai lançar o alicerce e não será capaz de acabar. E todos os que virem isso começarão a caçoar, dizendo: ‘Este homem começou a construir e não foi capaz de acabar!’.
Ou ainda: Qual o rei que ao sair para guerrear com outro, não se senta primeiro e examina bem se com dez mil homens poderá enfrentar o outro que marcha contra ele com vinte mil? Se ele vê que não pode, enquanto o outro rei ainda está longe, envia mensageiros para negociar as condições de paz. Do mesmo modo, portanto, qualquer um de vós, se não renunciar a tudo o que tem, não pode ser meu discípulo!”.
Meditação. — “Naquele tempo”, diz São Lucas no Evangelho deste domingo, “grandes multidões acompanhavam Jesus”. Apesar disso, essas grandes multidões ainda não haviam entendido qual era o verdadeiro propósito daquele homem tão misterioso. E, por isso, Nosso Senhor lhes dirige uma palavra bem dura, já aludindo à Paixão que sofreria em Jerusalém, pela salvação das almas: “Se alguém vem a mim, mas não se desapega de seu pai e sua mãe, sua mulher e seus filhos, seus irmãos e suas irmãs e até da sua própria vida, não pode ser meu discípulo.”
No texto original, a advertência de Cristo parece ser ainda mais severa, porque Ele fala no estilo próprio das línguas semíticas, em cuja gramática não há comparações, mas contrastes. Em razão disso, na tradução de São Lucas para o grego, Jesus não fala propriamente em “desapegar-se” do pai e da mãe, mas em “odiar” os dois (καὶ οὐ μισεῖ / e não odeia…). É evidente, porém, que Nosso Senhor não nos pede ódio por nossos familiares, mas que O amemos com um amor maior e acima de todas as coisas.
Tal gênero de pedido deve nos parecer, a princípio, algo bem esmagador. O ensinamento central do Evangelho deste domingo está, neste sentido, nas entrelinhas. Quando Nosso Senhor nos pede um amor assim, é porque o verdadeiro amor nos leva a trocar tudo pela posse do amado. Esse tipo de amor é o que buscava São João da Cruz, um santo místico da Ordem dos carmelitas, cujos escritos ajudaram muitos católicos a viverem a “noite escura”, ou seja, o desapego da criatura e de si mesmo.
A própria história dos pais de São João da Cruz (Gonçalo e Catarina) ajuda a ilustrar o ensinamento de Cristo. Para casar-se com a pobre Catarina, Gonçalo deixou toda a sua herança e aceitou viver na pobreza. Do mesmo modo, o ato de deixar tudo por Jesus só faz sentido se nós temos diante dos olhos um grande amor. E é esse amor que nos faz enxergar um tesouro maior que todas as outras coisas, por mais valiosas que sejam. Mas se esse amor não existe, então ninguém pode suportar uma exigência tão grande. É como diz Jesus a respeito da guerra entre dois reinos: “Qual o rei que ao sair para guerrear com outro, não se senta primeiro e examina bem se com dez mil homens poderá enfrentar o outro que marcha contra ele com vinte mil?” Devemos sempre examinar como está o nosso amor por Cristo.
Na verdade, ninguém tem, por si mesmo, um amor divino para amar a Deus. Trata-se de um dom que só Ele pode nos conceder, enviando sobre nós o Espírito Santo. Aliás, isso é uma verdade bem realçada no Evangelho de São Lucas, que é conhecido como o evangelista do Espírito Santo, pelos inúmeros versículos em que ele se refere ao Paráclito. A narrativa de Pentecostes, por exemplo, aparece nos Atos dos Apóstolos. Ali, São Lucas descreve como o poder do Espírito Santo inundou os corações dos discípulos, fazendo com que São Pedro pregasse destemidamente a Boa Nova de Jesus.
Se, todavia, depositarmos nossas esperanças em nossas próprias habilidades e talentos, é certo que jamais daremos conta da missão para a qual fomos destinados. Precisamos, sim, de outro organismo, de uma moção do Espírito Santo, que, em teologia, chamamos “graça santificante”. Essa graça, que nos chega pelo Batismo ou se recupera na Confissão, opera em nossa alma uma transformação, uma disposição espiritual para o cumprimento da vontade de Deus.
Essa transformação consiste, em linhas gerais, no desenvolvimento da caridade, de modo que possamos amar a Deus com amor divino. Para um cãozinho nos amar verdadeiramente, por exemplo, ele deveria possuir, além do instinto canino, também uma natureza humana. O homem, por sua vez, precisa de uma graça divina para amar divinamente. E, uma vez agraciados com esse dom, devemos preservar nosso “estado de graça”, a fim de que a “semente da vida eterna” se desenvolva e dê muitos frutos espirituais.
Nos grandes santos, esse amor divino tornou-se tão patente que todos podiam testemunhar a Pessoa de Cristo na vida deles. Via-se que não eram apenas mulheres e homens bons, mas mulheres e homens espirituais, cujas ações eram guiadas pelo Espírito Santo. E Deus deseja fazer o mesmo conosco, se nos deixarmos moldar pela sua graça.
Oração. — Senhor Jesus, tornai a vossa Igreja, que existe “para pregar e ensinar, ser o canal do dom da graça, reconciliar os pecadores com Deus e perpetuar o sacrifício de Cristo na santa missa” (Paulo VI, Evangelii Nuntiandi, n. 14), uma multidão que não só caminha convosco, mas que vos ama com amor divino. Amém.
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