Não precisamos merecer, mas precisamos acolher. E, acolhendo, redescobrimos o sentido mais profundo da vida, uma chama interior que ilumina e dá direção. – Homilia diária — Evangelho de São Lucas 1,39-45
Homilia diária — Evangelho de São Lucas 1,39-45
Eu me lembro do instante exato em que essa pergunta me atingiu em cheio: “Como posso merecer que a mãe do meu Senhor me venha visitar?” Eu havia lido o Evangelho incontáveis vezes, mas naquela manhã, ao me deparar novamente com a cena do encontro entre Maria e Isabel, algo se mexeu dentro de mim. Era como se aquelas palavras ecoassem não apenas na Judéia de dois mil anos atrás, mas no meu próprio cotidiano. Eu estava sentado em frente à minha mesa de trabalho, cercado por livros, anotações, tentando dar sentido a uma série de compromissos que se acumulavam, quando me vi distraído. Eu pensava em como as pessoas buscavam reconhecer algo sagrado em suas rotinas corridas. E a pergunta de Isabel, tão simples e profunda, mostrou-se cheia de implicações sobre o que significa ser visitado pelo sagrado.
Naquele trecho do Evangelho de Lucas, Maria, grávida de Jesus, vai às pressas visitar Isabel, também milagrosamente grávida de João Batista. Ao ouvir a saudação de Maria, a criança no ventre de Isabel salta de alegria, e Isabel, cheia do Espírito Santo, reconhece que aquela jovem diante dela é a mãe do Senhor. Então Isabel se pergunta: “Como posso merecer que a mãe do meu Senhor me venha visitar?” É uma pergunta carregada de espanto, gratidão e humildade. E, naquele momento, percebi que ela não pertence apenas ao passado, mas ecoa no presente, refletindo o coração humano em busca de algo maior, algo que nos ultrapassa.
Para entender essa cena, imagine por um instante uma pessoa comum, correndo atrás das obrigações do dia a dia. Pode ser você, pode ser eu. Você acorda cedo, checa o celular, toma um café, enfrenta o trânsito, mergulha no trabalho, volta para casa cansado, tenta manter contato com amigos e família. Nesse ciclo, às vezes, a sensação de sentido se esvai. A fé, se é que existe, muitas vezes se reduz a um detalhe de calendário, uma missa de domingo ou uma oração rápida antes de dormir. Então, de repente, você se depara com uma visita inesperada, algo que te coloca diante de uma verdade maior, de uma presença sagrada que não cabe em protocolos ou planejamentos. Pode ser um encontro com uma pessoa que irradia paz, uma leitura que toca o íntimo, um evento que gera uma mudança interior. E então surge a pergunta: “Como posso merecer esse encontro?”
No caso de Isabel, ela sabia da grandeza do que estava diante dela. Ela reconhecia que o Messias prometido, o Salvador tão aguardado, já habitava o ventre de Maria. O que impressiona é que Isabel não reagiu com inveja ou ressentimento, mas com humildade e júbilo. Ela percebeu que não era o status ou o esforço pessoal que atraíra Maria até ela, mas sim a graça divina. E isso nos dá uma pista: a graça de Deus não é um troféu para quem acumula pontos de mérito, mas um presente, um dom que Ele concede por amor. Assim como Isabel, muitas vezes não entendemos o porquê de certas experiências espirituais nos alcançarem, por que certos insights nos são dados, por que a fé de repente salta em nosso coração. Tudo isso é puro dom.
Isabel não mereceu a visita de Maria
Voltemos à nossa realidade cotidiana. Talvez você nunca tenha pensado nisso, mas momentos de encontro com o sagrado acontecem de forma sutil. Você pode ter sentido isso ao observar a natureza, ao perceber a beleza da criação; pode ter experimentado diante de um gesto de bondade desinteressada; talvez em meio a um sofrimento profundo, quando tudo parecia perdido, uma presença discreta lhe deu forças inesperadas. Nessas horas, a pergunta “Como posso merecer?” é quase inevitável. É como se a alma, surpresa, dissesse: “Eu não fiz nada para ganhar isso, não cumpri uma lista de tarefas sagradas para alcançar esta graça.” E é justamente aí que a fé cristã mostra um caminho: não se trata de merecer, e sim de acolher. Isabel não fez por merecer a visita de Maria, mas estava pronta a reconhecê-la. Estava aberta.
E a abertura é a chave. Quando Maria chega, Isabel podia ter reagido com ceticismo ou desconfiança. Podia ter pensado: “Quem é essa jovem para trazer tamanho anúncio?” Mas ao contrário, ela se alegra, acolhe e se deixa tocar pela presença divina que Maria carrega consigo. É um contraste marcante com tantas vezes em que, diante de algo bom e belo, fechamos o coração por medo, desconfiança ou orgulho.
Pense em situações reais. Conheci um amigo, anos atrás, que dizia não acreditar em nada que não pudesse medir ou comprovar. Uma postura cética, digamos. Um dia, ao visitar a mãe doente no hospital, testemunhou uma corrente de orações entre desconhecidos, gente simples que ali se reunia para apoiar doentes e familiares. Apesar de não acreditar, ele sentiu algo diferente, um calor, uma paz que não sabia nomear. Naquele instante, poderia ter ignorado o que sentiu, mas decidiu prestar atenção. Ele não “merecia” nenhuma experiência mística – nunca procurara –, mas ao ver aquela fé ativa, a simplicidade dos que rezavam, algo em seu interior mudou. Não estou dizendo que ele virou um devoto praticante da noite para o dia, mas aquela vivência plantou uma semente. Foi, de certa forma, uma visita inesperada do sagrado.
Aplausos ou honrarias?
Ao olhar para o relato bíblico, percebe-se também um detalhe importante: Maria não vai à casa de Isabel para receber aplausos ou honrarias. Ela não diz: “Isabel, prepare-se, pois a mãe do Senhor chegou”. Ao contrário, a atitude de Maria é de serviço e partilha. Ela é aquela que carrega o Salvador, mas está disposta a caminhar até a casa de sua prima, ajudá-la nos afazeres e compartilhar da alegria do milagre que ambas viviam. Essa dinâmica é reveladora: Deus visita o ser humano através da humildade, do cuidado, de pequenos gestos concretos. Não é preciso um show de luzes no céu, basta a disposição de alguém em sair de si para encontrar o outro.
Da mesma forma, quando trazemos essa lógica para o nosso mundo, percebemos que a graça de Deus não se manifesta apenas no extraordinário, mas também no ordinário. Um sorriso, um telefonema no momento certo, uma palavra de consolo, um ato de generosidade – essas coisas podem ser a “visita” que tanto precisamos, aquela fagulha que reacende a fé ou a esperança na bondade humana. E quando acontece, surge de novo a pergunta: “Como posso merecer isso?” A resposta continua a mesma: não se trata de merecimento. Trata-se de acolher o dom com gratidão e reconhecer a ação de Deus através de instrumentos humanos ou situações cotidianas.
Isabel, no relato de Lucas, é um exemplo de quem reconhece a ação divina e não tenta controlá-la. Ela não diz: “Isso não faz sentido” ou “Preciso de provas.” Não. Isabel já vive no terreno da fé, e por isso consegue ver na visita de Maria um grande privilégio. Em nossa vida, quanto mais cultivamos a fé, a oração, a reflexão sobre as Escrituras e os ensinamentos da Igreja, mais afinados ficamos com esses sinais. Não significa que vamos entender tudo de imediato, mas passamos a enxergar com os olhos da fé. E a visão da fé é capaz de captar a presença divina em lugares e momentos onde o olhar puramente materialista nada enxerga além de circunstâncias banais.
No entanto, essa descoberta não deve ficar apenas no campo da admiração estática. Se Isabel e Maria encontram-se e trocam bênçãos, isso gera um impacto concreto. A fé leva à ação, à partilha, à comunhão. Assim também na nossa vida, reconhecer a presença de Deus exige uma resposta: transformar nossa atitude, cultivar a humildade, agradecer o que recebemos e repassar adiante o bem que nos foi dado. Quantos gestos simples podemos praticar, quantos convites à generosidade e à compreensão surgem diante de nós diariamente? Quando aceitamos esses convites, estamos, de certa forma, imitando Maria, levando a presença do Senhor aonde formos, mesmo que não sejamos plenamente conscientes disso.
Transformação
E aqui se dá a transformação de que falava no início. Assim como fui tocado por essa pergunta e percebi o quanto ela é atual, você também pode passar da indiferença ou da confusão para a compreensão e a vivência. Quando se entende que não se trata de merecer, mas de acolher, algo muda na nossa relação com a fé. Em vez de nos esforçarmos para “ganhar pontos” com Deus, passamos a nos dispor a reconhecê-Lo onde Ele quer se manifestar. Em vez de perguntar “por que não sou digno?”, começamos a perceber que Deus não age por critérios humanos de dignidade, mas sim por amor e desígnio misterioso. O que se pede de nós é a abertura do coração.
No final, ao encerrar essa reflexão, quero convidar você a agir. Você ouviu a história do encontro entre Maria e Isabel, entendeu a lógica da graça divina e a importância do acolhimento. Agora, o que fazer com isso? Uma sugestão prática: reserve um momento do seu dia para prestar atenção em algo ou alguém com olhar de fé. Pode ser um membro da família, um colega de trabalho, ou até mesmo um estranho na rua. Pergunte-se: “Que tipo de visita posso ser na vida desta pessoa?” ou “Será que Deus está me dizendo algo por meio dela?” Esse exercício pode parecer simples, mas ele treina o olhar interior para perceber a presença de Deus, mesmo onde não esperaríamos.
Outra iniciativa: se você é cristão, reflita nas palavras de Isabel: “Como posso merecer que a mãe do meu Senhor me venha visitar?” Talvez você nunca tenha pensado em Maria dessa forma, mas pode tentar se aproximar dela pela oração, pedindo que interceda para que você reconheça a presença de Jesus em sua vida. E se você não é cristão ou não tem uma fé definida, pode ao menos cultivar a sensibilidade para as experiências que despertam em você admiração, respeito, bondade. Essas também são sementes que podem crescer e transformar sua perspectiva.
O ponto final dessa jornada não é chegar a uma lista de merecimentos ou conquistas espirituais, mas compreender que a graça de Deus não segue nossas lógicas de troca ou barganha. Não importa o quão simples, imperfeitos ou despreparados nos sentimos, a pergunta de Isabel nos ensina que o sagrado pode nos visitar, independentemente dos nossos currículos religiosos. Podemos receber essa visita se estivermos atentos, humildes e dispostos a deixar Deus nos surpreender.
Assim, concluo: se Isabel, já no início do Evangelho, se maravilha com a visita de Maria e reconhece a presença do Senhor em seu ventre, nós também podemos, em pleno século XXI, nos maravilhar quando a graça nos atinge, quando o sagrado se faz presente nas dobras da nossa rotina. Não precisamos merecer, mas precisamos acolher. E, acolhendo, redescobrimos o sentido mais profundo da vida, uma chama interior que ilumina e dá direção. É essa chama que desejo que você encontre e mantenha acesa, sabendo que ela não depende de merecimento, mas sim de gratuidade e amor.